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GENTE DA MELHOR CEPA
Acadêmico: José Renato Nalini
Nessa revisita memorialística à São Paulo de antanho, encontram-se pessoas cujas vidas dariam romance, encontrassem alguém de talento para reproduzi-las.

Gente da melhor cepa

O ensino e aprendizado da História privilegia os grandes acontecimentos e os decantados “heróis”. Quando a vida transcorre no interior dos lares, no seio da família, com protagonistas quase sempre anônimos, a não ser para reduzidíssimo círculo.

É preciso rever esse preconceito contra a micro-história, redescoberta por memorialistas e biógrafos dos seres que não ganharam notoriedade. E nem por isso deixaram de ser importantes para aqueles com os quais conviveram.

Nessa revisita memorialística à São Paulo de antanho, encontram-se pessoas cujas vidas dariam romance, encontrassem alguém de talento para reproduzi-las. Vejamos, por exemplo, os Capote Valente. Moravam o Dr. Capote Valente, D. Nenê e filhos, numa bela residência ajardinada, à rua das Palmeiras, próxima à Igreja de Santa Cecília. A primogênita, Edith, era artista. Fina, delicada, tocava piano e pintava. Seu quarto, com mobiliário rococó, tinha as paredes pintadas por ela com guirlandas de flores.

Mantinha em sua saleta um vaso de bronze com rosas vermelhas. Um grande salão se comunicava com tal saleta. A parede de separação se escondia, quando necessário, e o ambiente adquiria singular vastidão para as audições e recitais de piano, declamação e canto.

As moças de família tinham de ser prendadas. Além dos afazeres domésticos, tinham de bordar, tricotar e pintar. Aprendiam piano e canto. Quem ensinava cantar era Mlle. Bouron e as vozes mais privilegiadas durante uma época foram as das meninas da família Numa de Oliveira.

As professoras de francês e inglês – a primeira era língua obrigatória para as melhores famílias, eram Madame Lacourcière e Miss Gray. Eram professoras que iam às residências, para ensinar a prole.

Uma aluna conta sua lembrança de Miss Gray: “Vinha limpinha, saia de lã, blusa de cambraia irrepreensível, chapéu e luva. Tirava esses dois, punha o relógio na mesa. Trazia-o preso a uma corrente que, por sua vez, era suspensa a um broche com os três emblemas da Inglaterra: a rosa da Irlanda, o cardo da Escócia, o trevo do País de Gales. Começava então a lição, método Berlitz, conversa meio sem graça”.

As meninas eram pudicas, mas entre si colocavam apelido nas mestras. Miss Gray, por exemplo, era conhecida na intimidade como “good material”. Pois a qualquer elogio a uma de suas roupas, dizia logo: “Very good material”.

Já Madame Lacourcière interpretava com perfeição o aplomb francês. Requintada com suas toaletes, perfumada, autêntica parisiense. Mas ensinava a contento. As alunas passavam a conhecer o compêndio da literatura francesa de René Doumic, as fábulas de La Fontaine, todos os textos de Molière, lidos, explicados, comentados, decorados. Os verbos mereciam especial apuro. Todos os tempos eram exigidos, lidos e relidos, até se guardar de cor e não se errar.

Tão sofisticada era, que mandava comprar na campanha francesa as sementes que plantava em seu jardim. Quando o Teatro Municipal estreou, ela mandou vir de Paris um tecido verde com bordados dourados. Queria brilhar perante as paulistanas. Seu marido era canadense e ambos faziam camping na praia da Enseada, no Guarujá, àquele tempo deserta.

Outra figura bem conhecida do nicho aristocrata da pauliceia nas primeiras décadas do século XX era D. Leonor Camargo. Fundara e mantinha uma “Obra de Proteção aos Filhos dos Tuberculosos”. Sua façanha era ler as mãos. Bem fornida de carnes, morava na Barra Funda, numa casa térrea que dispunha de jardim. Tinha deficiência e vivia em sua cadeira de balanço em vime, atendendo a quem a procurava a qualquer hora.

Interessava-se por todos os assuntos e contava-se que adquirira parcial imobilidade dos braços e total das pernas, quando enviuvara aos vinte anos. Era tão relacionada que Guiomar Novaes tocou só para ela, em casa de uma amiga comum que a fez transportar. O diretor do Teatro Municipal também fez abrir uma porta sempre fechada, para que ela pudesse entrar com sua cadeira.

Esse passatempo de ler as mãos atraía as mulheres cujos interesses eram garantir a fidelidade dos maridos e a aquisição de bons pretendentes para as suas filhas. Isso garantiu a D. Leonor Camargo ser uma personalidade respeitada na São Paulo daqueles anos.

Pessoas que às vezes ainda permanecem como patronímicos de logradouros públicos, mas que a imensa maioria das pessoas não tem ideia de quem tenham sido. Eram gente de boa cepa. Hoje, não se pode afirmar que existam na quantidade necessária a que o Brasil atinja grau civilizacional de que não se envergonhe.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 08 02 2024



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