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DE ALMA E CUIA
Acadêmico: José Renato Nalini
O poeta voa e faz quem lê sua poesia voar também: “Onde os pássaros não chegam. É pra lá que eu voo”.

De alma e cuia

Deve ser uma experiência maravilhosa prefaciar o livro de uma neta. Maria da Costa Manso Vasconcelos vivenciou o privilégio, ao fazer a apresentação formal do livro “De alma e cuia”, de sua neta Lia Leme.

O vínculo afetivo não impede que o texto constitua exemplo de prefácio, com inúmeras menções à poesia confeccionada por Lia, na sua primeira incursão que vem à luz, ao longo de cento e sessenta e sete páginas.

Recorda a avó o início de tudo: “Mal sabia as primeiras letras quando ganhou um caderno e resolveu escrever o diário das férias. No passeio, a cada passo sentava e tomava notas do que via... assim era a Lia. Seria já um vislumbre da riqueza da vida ao redor?”.

Assim foi o trajeto de Lia. Percebeu que “a vida morde, assopra e beija. Chora, canta e nada. Em tudo o que foi, é e será. E, mais estranho ainda, seria não me aventurar”.

Nada como possuir uma avó sensível, também afeiçoada às letras, para perceber que a neta “segue a caminhada explorando seu mundo interior, vivendo descobertas, encantamentos, angústias e dúvidas, certa de que “É preciso mergulhar nas próprias profundezas. Para tomar fôlego. E enfrentar a superfície”.

Quem faz poesia não consegue se refrear. Imaginação e pensamento correm soltos. O poeta voa e faz quem lê sua poesia voar também: “Onde os pássaros não chegam. É pra lá que eu voo”.

Transcende na produção de Lia o DNA da Justiça. Ser bisneta do Ministro Costa Manso, neta do Juiz José Roberto Vasconcelos, sobrinha de Guilherme da Costa Manso Vasconcelos só poderia influenciá-la. Daí exclamar: “Busco por culpados e, para onde quer que olhe, ali estou eu. Sou júri, ré e carrasca, na sentença que só cabe a mim”.

É próprio à faixa etária da poeta – assim as grandes artífices da poesia preferiam ser chamadas, em lugar de poetisas... – defrontar-se com o labirinto existencial: “Viro do avesso toda e qualquer certeza, que antes se julgava ade, por um simples capricho da idealização. Já não vejo com clareza, e nem poderia, uma vez que escolhi encarar a escuridão. Cabe a cada um tatear o próprio vazio e mergulhar mais fundo – sem pressa para respirar. Encontrei uma brecha em meu próprio tempo, onde me escondo e ninguém me vê. Se perguntarem por mim, diga que fui me visitar”.

Essa busca do autoconhecimento é um desafio que poucos humanos conseguem vencer. Lia tem noção da complexidade dessa batalha: “Sou o que faço. Não o que digo. Ao me esconder atrás de palavras vazias. Sustento a imagem irreal. E vivo na falsa esperança. De poder acreditar em mim mesma”.

Poesia filosófica, a penetrar os recônditos d’alma e as transformações que o passar dos anos impõe à nossa fragilidade: “Meu corpo é instrumento do destino. Muda com o tempo. Adapta-se às situações. Sente, expande, se retrai. Veste o que convém. Esconde-se quando necessário. E despe-se perante a si mesmo. Para que possa ve além. Do que mostra o próprio reflexo”.

Lia Leme nasceu em São Paulo, em novembro de 1992. Fez Administração de Empresas na PUC-SP e, após uma década de atuação no mundo corporativo, dá início à transição para a área terapêutica. Tornou-se psicanalista e se especializa em psicanálise da adolescência no Instituto Sedes Sapientiae. “De alma e cuia” surgiu primeiro como blog para registrar sua experiência na Ásia, em 2015, quando permaneceu alguns meses entre Índia, Sri Lanka e Nepal. Admite a incessante busca pelo autoconhecimento e afirma que durante o processo de transição profissional, sua prosa foi se convertendo em poesia. Em boa poesia, segundo este modesto diletante, que nunca ousou incursionar pela crítica.

Lia sabe exprimir aquelas sensações que só as mentes superiores logram transmitir: “Reencontros guardam tudo o que não coube numa primeira vez”. Ou “A imagem envelhece com o espelho. Mas resgata no fundo dos olhos. Toda uma história que não se apaga”. E ainda: “Os fios brancos lembram. Que na vida nada é para sempre. Nem mesmo o próprio tempo. Que foge constantemente de si”.

Boas vindas à jovem nova poeta. O mundo precisa, cada vez mais, de poesia.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 06 02 2024



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