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Acadêmico: Gabriel Chalita Só quem tem um pensamento preguiçoso não pensa no que deixa quando desiste.
Um pensamento preguiçoso Ele disse que não vai dizer. Se tivesse dito, economizaria nossos tempos. Disse nada. Meu filho é silêncio quando o assunto vasculha seus descuidos com a vida. Sou um pai querendo fazer as pazes com o acerto. Fiz de tudo para dar tudo ao Leo e ao Mateus. O Mateus parece ter encontrado sentido. É mais novo e, ao contrário do irmão, já está encerrando a faculdade. Leo vai mudando de curso. Nada o preenche. Errei muito ao comparar os irmãos. Filhos são pedaços nossos que se fazem inteiros nos diferentes passos que vão dando na vida. Demorei a entender. Queria calçar em um o calçado do outro. Não cabe. Leo tem inveja do irmão. E, talvez, seja eu o responsável. Minhas falas eram de elogio a um e de cansaço ao outro. Por que tão diferentes? Mateus abraça os esportes, a música, a leitura, os estudos. Leo, as drogas e a ausência de palavras. Leo tem um pensamento preguiçoso. Só quem tem um pensamento preguiçoso não pensa no que deixa quando desiste. Ele não me enfrenta. Disse que queria ser arquiteto como eu. Depois, mudou. Depois, voltou. Minha mulher disse que ele me admira tanto e que, por dentro, ele vai se derretendo por causar decepções. E causa. Lembro a primeira vez que ele veio com um piercing no nariz. O cabelo sem cuidado. Uma tatuagem exagerada. Eu olhei, não gostei, não disse. Depois entendi que ele queria que eu dissesse, mesmo que para desdizer. Talvez tenha errado em ser tão preocupado com o conforto material deles, enquanto era displicente nos assuntos do amor. Eu já o internei para tratar dos vícios. Ele aceitou. Saiu sem luz. Parecia um desconhecido quando o irmão contava os sucessos. Eles se dão bem, mas vejo que a luz de um faz sombra no outro. Parei de comparar. Parei de aplaudir. Mateus precisa menos de mim, já é pássaro que voa. Leo é instrumento a ser afinado ou instrumento que emudeceu diante de outros sons. Adolescente ainda, brigava com o corpo. Fazia regimes exagerados. Errados, dizia eu. Já culpei minha mulher por excesso de proteção, por desculpar sempre, por construir um texto de que ele é mais frágil que o irmão. Os avós também emprestaram seus mimos. Primeiro neto dos dois lados. Filho não vem com explicações de como criar. O tempo vai nos ensinando os nãos necessários. E as pontes que ligam eles a eles mesmos. Mateus reclamou, algumas vezes, de ter que ser o responsável por um irmão que fazia tudo em excessos, a comida, a bebida, as brigas. Comigo, ele silencia; com os outros, ele enfrenta errado. Onde foi que ele aprendeu a gritar, a ameaçar, a espancar? Sou de trabalho e da paz. Encerro atitudes para não magoar o outro. A mãe é, também, calma, educada. A quem ele puxou? Sei que minhas perguntas estão erradas. É apenas um desabafo. É um olhar para trás para entender o que fazer. É fazer acreditando que o amanhã existe. A paternidade é de uma responsabilidade que, talvez, me tenha faltado nos inícios. Nos inícios, onde tudo é mais importante. Um filho tem, primeiro, os pais como janela para ver o mundo. Janela que vira espelho. Um filho se olha e precisa ver. Ver é, também, lembrar. As primeiras memórias constroem alicerces para as outras. Meu pai foi, comigo, um pai tão melhor do que eu fui para os meus filhos. Hoje, eu tenho essa memória e tento arrumar as bagunças. Tenho medo de o tempo do desperdício impedir o tempo que ainda resta. Depois de tantas terapias do meu filho, resolvi eu me encontrar. A terapia trouxe algumas pistas de que eu também tenho um pensamento preguiçoso. Minhas crenças falaram mais alto em mim do que a verdade. Assustei com o pensamento doído de que preferia ter tido só o Mateus. Pensei e dispensei o pensamento. O fácil não é mais digno de amor do que o trabalhoso. Sou arquiteto e preciso compreender que da intenção vem o projeto, que do projeto vêm as construções, que as construções precisam abraçar as pessoas que vão viver nelas. Hoje, abraço mais meu filho. Ontem ainda, ele se deitou no meu colo. Eu estava cheio de trabalho, cheio de repostas a serem dadas no celular. Deixei de lado. Compreendi, pelo menos naquele instante, que a resposta mais fundamental que eu tinha que dar à minha e às nossas vidas estava deitada no meu colo dizendo: "Pai, eu existo". Chorei acariciando seus cabelos e dizendo amor nos nossos silêncios. Publicado no jornal O Dia, em 04 02 2024 voltar |
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