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GOVERNAR SEM POLÍTICA
Acadêmico: José Renato Nalini
De Gaulle pagou um preço por não se vincular aos políticos.

Governar sem política

Pode ser considerada heresia a afirmação de que um bom governante não precisa da política. Ao menos, dessa política rasteira, profissionalizada e convertida em instrumento de busca pessoal de interesses pouco afinados com o bem comum ou com as necessidades coletivas.

Mas em seu tempo, Charles De Gaulle foi considerado um general apolítico. Verdade que seus detratores o consideravam matreiro, sagaz, esperto como são os que se insinuam diante do eleitorado e conseguem convencê-lo de que não têm defeitos. De Gaulle não fez qualquer discurso político ou declaração política no sentido geralmente aceito do termo.

Durante o período em que ele se opunha ao regime de Pétain, muitos queriam que ele se definisse politicamente. Direita ou esquerda? Demagogia ou fascismo ditatorial? Volta ao passado ou edificação de uma nova utopia? Muitos queriam respostas, mas De Gaulle se recusava a dá-las.

Um jornalista britânico pediu sua opinião política em agosto de 1940. Ele respondeu: “Sou um francês livre. Acredito em Deus e no futuro da minha pátria. Declaro solenemente que não pertenço a nenhum partido político nem estou ligado a político de espécie alguma, seja de direita, de centro ou de esquerda. Só tenho um objetivo: libertar a França”.

Como seria bom que um pretendente a estadista no Brasil também se dispusesse a trabalhar em favor da comunidade e não se subordinar a interesses subalternos de grupos garantidores da governabilidade. O que se vê é que esse discurso apolítico rende dividendos perante a maior parte da cidadania, aquela cansada do exercício estéril da retórica, do jogo dos interesses, do “toma lá-dá cá”, do “é dando que se recebe”, mas que se decepciona quando o pretenso independente da política partidária se rende à força invencível dos que só fazem a má política.

É impossível pretender que o Brasil tenha alguém da estatura de De Gaulle. Quantos séculos de tradição e cultura nos separam da França? Ele tinha presente os efeitos negativos das disputas políticas em seu país. Desaprovava os embates e as maledicências que cercam a atividade dos áulicos nos Palácios. Por isso, em março de 1941, baixou uma ordem: “Toda a França Livre deve rejeitar implacavelmente qualquer suspeita ou preconceito em suas relações uns com os outros. Sejam quais forem as crenças e as origens de alguém, ele deve ser um irmão para todos os outros no instante em que começa servir à França”.

Alguém imaginaria um comando desses no Brasil de hoje? Se ambos os antagonismos asseveram amar o Brasil, o núcleo comum é maior do que as causas da separação entre radicais que se digladiam pelas redes sociais.

Pense-se na coragem de afirmar esse princípio em pleno curso do nazismo. De Gaulle respeitou rigorosamente o que afirmava. Aceitava dialogar com qualquer pessoa. Não excluía ninguém. E a França tinha uma tradição de antissemitismo. Quando René Cassin, por ele chamado para fazer parte do Gabinete, avisou que era judeu, De Gaulle apenas respondeu: “Eu sei”. Dois dos primeiros que o visitaram quando assumiu o poder foram Georges Boris e André Weil-Curiel, ambos judeus.

Num período de ausência sua, Boris chegou e foi mal recebido. Quando Charles De Gaulle ficou sabendo, mandou chamar o ofensor. A História registra que ele afirmou: “Se ele é judeu, partidário de Léon Blum ou qualquer outra dessas coisas, só vejo isto: que ele é um francês que, aos cinquenta e dois anos, alistou-se para lutar. Não reconheço diferenças de raça ou de opinião política entre nós. Conheço apenas dois tipos de francês: os que cumprem o seu dever e os que não cumprem”.

De Gaulle escrevia muito. Passou anos a redigir suas memórias. Elaborou inúmeros discursos. Correspondeu-se com centenas de pessoas. Em nada do que deixou se vislumbra vestígio de antissemitismo.

Ele pagou um preço por não se vincular aos políticos. Alguns diziam que ele era fascista. Muitos outros, que era propenso a instaurar uma ditadura ou um governo autoritário na França. Quando lhe cobravam definição política, fazia discursos em que admitia que cabia aos franceses escolher seu sistema político depois da guerra. E os princípios para alicerçar o futuro das instituições da França seriam inspirados em dois lemas: “Honra e Pátria” e “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, para serem fieis às tradições democráticas dos seus ancestrais.

Alguma semelhança com o que tem acontecido com a República Federativa do Brasil?

Publicado no jornal Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 29 01 2024



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