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A LUPA CRUEL
Acadêmico: José Renato Nalini
O ser humano é um animal que julga. Está continuamente a fazer juízo sobre o próximo.

A lupa cruel

O ser humano é um animal que julga. Está continuamente a fazer juízo sobre o próximo. Nem sempre tem coragem de emitir o que pensa a respeito do outro. O que seria da humanidade se os pensamentos fossem automaticamente detectados? Hoje vigora o império da hipocrisia, que às vezes se disfarça com diversas fantasias, ora denominando-se pudor, ora respeito humano e até querendo ser conhecida por caridade.

Ninguém escapa à fria análise do outro. O convívio é um exercício permanente do uso da lupa íntima. Todos estão sob sua mira. E ela costuma ser cruel, conforme as circunstâncias. Numa era em que o exibicionismo é a regra, em que intimidade e privacidade perdem essa queda de braço com a transparência, o mundo parece uma arena em que se avaliam aparência, modos, conduta, opções e estilos.

Quando submetido à enquete costumeira – “É difícil ser juiz?”. Aprendi a responder: “Todos julgam! A diferença é que eu assino embaixo do meu julgamento!”.

Quanto mais exposta a pessoa, mais minuciosa a aferição. Os famosos se submetem a um escrutínio severo. Perscruta-se praticamente tudo. E isso não é de hoje. Só que certo psicologismo em voga propõe que esses exames sejam divulgados, propalados e que não haja reserva sobre o juízo feito. Fenômeno que o intenso trânsito das redes sociais agudiza e pode gerar efeitos indesejados.

Haveria inúmeros episódios atuais que serviriam à comprovação de que tal comportamento integra a natureza humana. Porém, é mais tranquilo encontrá-los no passado, eis que os protagonistas são vultos históricos e não se impressionarão com os relatos.

Uma personalidade suscetível de servir como exemplo de quão controverso pode ser o julgamento coetâneo é Charles De Gaulle. O grande estadista francês era um poliedro de multifárias facetas, cada qual a refletir aquilo que os observadores queriam encontrar em seu perfil.

Conviveu com outras celebridades da época, vultos históricos instigantes, como Winston Churchill, Konrad Adenauer, John Kennedy, Dwight D. Eisenhower. Pesquisar as biografias de todos eles propiciaria curiosa reconstituição do caráter de De Gaulle. Mas o que pensava dele Harold Macmillan é suficiente para sustentar a complexidade das relações entre os homens – àquele tempo não existia Margareth Tatcher – que detinham poder nas grandes nações.

Harold MacMillan (1894-1986) foi Primeiro Ministro da Inglaterra entre 1957 e 1963. Estava empenhado em fazer com que seu país viesse a integrar a Commonwealth. A tanto, De Gaulle se opunha. Fazia questão de lembrar que a Inglaterra não se esquecia de que era uma ilha e que o mar não tinha limites para ela. Nunca se sentiu a integrar o Velho Continente, a Europa.

MacMillan se esforçava para mostrar que a Inglaterra de Kipling já não existia e que ela se considerava cada vez mais europeizada. Encontrava séria resistência do governante gaulês. Tentou abordagem mediante aproximação com os auxiliares de De Gaulle, que eram meros cumpridores das ordens do chefe. MacMillan sabia que tudo dependia exclusivamente de De Gaulle. E como é que ele considerava o todo-poderoso francês?

Atente-se ao seu relato:

“O imperador dos franceses...está mais velho, mais moralista e muito mais real do que da última vez que o vi...Apesar de ter uma dignidade e um charme extraordinários, de ser bom com os empregados e com as crianças, e assim por diante, dá a impressão de não ouvir argumentos. Simplesmente repete inúmeras vezes o que disse. Fala em Europa, mas quer dizer França. A tragédia é que concordamos com De Gaulle em quase tudo. Gostamos da Europa política, de que De Gaulle gosta. Somos antifederalistas; ele também. Tememos um renascimento alemão e não temos a menor vontade de ver uma Alemanha renascida. É assim que De Gaulle pensa também. Estamos de acordo, mas seu orgulho, seu ódio hereditário contra a Inglaterra, suas amargas lembranças da última guerra; acima de tudo, toda a sua imensa vaidade da França, faz com que nos acolha e nos rejeite, com um estranho complexo de “amor e ódio”. Às vezes, quando estou com ele, acho que superei isso. mas então ele volta à sua aversão e à sua antipatia, como um cão volta ao seu vômito”.

De Gaulle não permitiu que a Inglaterra ingressasse naquele experimento de que derivaria a União Europeia. Comentou com Adenauer, uns dias após o encontro com Macmillan, que este interpretara “uma grande cena sentimental” sobre o seu desejo de ingressar na Europa. A História se repetiu com o Brexit, onde os algoritmos fizeram a Inglaterra deixar o bloco e colher os impactos dessa desastrada opção.

Até que ponto o destino das nações se subordina às idiossincrasias de seus líderes, entregues à lupa cruel de seus parceiros/adversários?

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 23 01 2024



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