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A REVANCHE DE PAPINI
Acadêmico: José Renato Nalini
Os textos de Giovanni Papini, (1881-1953),são curtos e instigantes. Um deles, “Revanche”, fala de uma utopia: esbofetear a cidade e vingar a natureza.

A revanche de Papini

Já não se fala hoje de Giovanni Papini, (1881-1953), famoso escritor italiano, de espírito inquieto, rebelde, agressivo e iconoclasta. Seu livro “Gog” é uma sátira à mentalidade da época. Vale a pena ser lido, porque há coisas atemporais e que continuam absurdas, embora os anos passem depressa.

Os textos são curtos e instigantes. Um deles, “Revanche”, fala de uma utopia: esbofetear a cidade e vingar a natureza.

O objeto do que ali escreveu é a cidade de Nova Iorque. Mas bem poderia ser São Paulo.

Narra ele: “Vivi durante muitos anos em horríveis habitações nos bairros mais populosos da cidade mais populosa, poeirenta e rumorosa do mundo. Odiava os apartamentos, as casas, as ruas, a cidade. E não tinha outro remédio senão viver ali. E eu pensava que, cinquenta ou cem anos antes, no lugar daqueles imundos bordéis, daqueles casarões sujos e pestilentos, daqueles labirintos de asfalto e de barro, havia prados onde as flores se abriam ao sol, campos onde os frutos amadureciam, os pássaros cantavam, corriam lebres e o vento passava livremente: a terra franca, saturada de água, perfumada de grama sadia, silenciosa, hospitaleira para os vagabundos. E sonhava que um homem poderosíssimo – rico ou ditador – poderia um dia divertir-se, restituindo à natureza um pedaço daquela cidade asquerosa, derrubando as casas, descalçando as ruas e fazendo tornar o ar limpo onde havia corrupção, as árvores floridas onde corriam as cloacas, o silêncio onde havia estrondo, a solidão onde milhares de homens se amontoavam em túmulos de pedras superpostas”.

Na utopia de Papini, isso chegou a acontecer. O mesmo adquirente foi comprando as pequenas propriedades, depois as maiores, até que verificou possuir ruas inteiras. Então demoliu tudo. Algo que, de maneira microscópica, mas incessante, acontece também na pauliceia. As demolidoras estão em todos os quarteirões, pondo abaixo residências unifamiliares para a edificação de prédios condominiais. Sempre deixando de lado a advertência romana: “condominium, mater rixarum est”. O condomínio é a mãe de todas as encrencas...

Na fantasia de Papini, houve recuperação do destino natural daquela área. Ali brotou, com o plantio de árvores nativas, uma selva virgem, “com longos bosques, prados e canais, onde os pássaros cantam, as árvores florescem e só se ouve, longínquo e confuso, o rumor da cidade infernal”.

Uma parte do terreno foi transformado em zoológico sem grades. Casais de animais silvestres ali introduzidos proliferaram. Assim como os pássaros e as borboletas. É um sonho irrealizável para um conglomerado em que o único interesse é o dinheiro, mas que poderia ser concretizado em escala menor. O mundo sente falta de reconquistar o paraíso terrestre. São Paulo necessita de árvores. As que aí estão, são acusadas de prejudicar os humanos, pois – sem os cuidados que merecem – caem no emaranhado de fios, mais um atestado da nossa selvageria, pois já era tempo de tê-los sob a terra.

O Plano Diretor das cidades deveria permitir, sim, o adensamento. Mas condicionado a uma compensação. Instituir áreas verdes. Edificar residências, em lugar de destinar os prédios apenas para o trabalho, numa era em que este rende mais na forma de home office.

Por que não pensar em recuperar os córregos, os cursos d’água, os riachos e rios que aqui existiam e que foram soterrados para servir ao mais egoísta dentre os meios de transporte: o automóvel?

Por que não incentivar os quarteirões a cuidarem de suas árvores, a destinarem parcela dos terrenos para pequenos bosques, jardins, hortas e espaços saudáveis?

A crônica de Papini fala com orgulho de que por onde os automóveis uivavam e semeavam pestilência, veneno e mau cheiro, hoje passeiam animais da fauna local. Onde havia bar e farmácia, uma fonte de água limpa e clara sacia quem estiver com sede. Onde o cobrador se postava à espera de uma vítima, um canteiro de flores se alegra ao sol.

Para ele, esse sonho tinha um significado especial: reservara-se, “no coração de uma cidade orgulhosa e colossal, o verdadeiro luxo, o mais caro do homem moderno: o isolamento e o silêncio”. Alguns, que só enxergam cifrão, dirão: “capricho de um doido”. Para pouquíssimos, o milagre da edificação, dentro de um vasto manicômio, uma célula de verdadeira sabedoria.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 11 01 2024



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