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MISSÃO À CHINA
Acadêmico: Rubens Barbosa
Voltei mais quatro vezes a Pequim. Impossível reconhecer a cidade onde vivi por três meses em 1975

Missão à China

Em um exemplo de como o interesse nacional deve prevalecer sobre a ideologia, o governo militar, anticomunista, liderado pelo general Ernesto Geisel, restabeleceu as relações diplomáticas com o governo da China em agosto de 1974. Em 2024, comemora-se, assim, 50 anos do relacionamento entre o Brasil e a China.

Em fins de 1974, o Itamaraty, chefiado pelo ministro Azeredo da Silveira, que implementou a política externa do pragmatismo responsável, designou um pequeno grupo de diplomatas para abrir a embaixada do Brasil em Pequim. Liderada pelo conselheiro Proença Rosa e integrada pelos secretários Carlos Moreira Garcia e eu, o grupo tinha como missão tomar as providências administrativas para o funcionamento normal de uma embaixada, o aluguel da futura residência e chancelaria, a abertura de conta em banco e o estabelecimento dos primeiros contatos diplomáticos com o ministério do exterior chinês.

Cabe rememorar alguns episódios que cercaram a inesquecível experiência de viver, por mais de três meses, no país que começava a sair da experiência traumática da Revolução Cultural, da Gangue dos Quatro, liderada pela mulher de Mao Tsé-Tung, já presa, e que tinha renda per capita e produto nacional bruto menores do que os do Brasil.

A viagem para Pequim, que começou em 1974, terminou no dia 5 de janeiro, coincidindo com a divulgação da nova Constituição pela Assembleia Nacional do Povo, a capital toda iluminada e os edifícios e casas engalanados. Não havia voo direto para Pequim. Voamos até Hong Kong e, de lá, a pé, cruzamos uma ponte para tomar um trem, que nos levou até Xangai, onde pegamos um avião para Pequim.

O escritório da nova embaixada foi instalado no velho Beijing Hotel. Havia exilados brasileiros que trabalhavam na rádio da China internacional. Uma senhora, mulher de um dos exilados, veio visitar o escritório improvisado para ler jornais brasileiros. Falou comigo e depois de algum tempo se despediu dizendo que um dos tradutores que estavam nos ajudando havia telefonado para o ministério, informando que ela estava já há algum tempo conversando conosco.

Uma de minhas tarefas determinadas pelo conselheiro Proença Rosa foi abrir as contas da embaixada no Banco da China. O banco, bem instalado, tinha muitos guichês. Fui atendido por uma funcionária solícita que me deu várias fichas para preencher e trabalhava fazendo cálculos com grande agilidade em um ábaco, o instrumento mais moderno utilizado no banco.

Em um fim de semana, Carlos Garcia e eu, com minha mulher, Maria Ignez, que, em meio a minha estada chinesa, veio visitar-me, fazendo escala em Paris e pegando o primeiro voo direto Paris/Pequim da Air France, decidimos ir a um restaurante fora de Pequim, em Tianjin, a nós recomendado por uma amiga inglesa. Nosso motorista, colocado pelo governo para trabalhar junto à embaixada, fez que não entendeu e nos levou a um outro restaurante indicando que era muito bom. Já instalados, reparamos que em mesa próxima um grupo de pessoas nos olhava sem parar e percebemos que falavam português. Logo a senhora que visitara o escritório veio falar conosco. De imediato, ficamos sabendo que eram todos exilados. Não foi difícil entender a cumplicidade do motorista e das autoridades locais, desejando testar nossa reação. Não houve hesitação de nossa parte, e para surpresa de todos confraternizamos com nossos conterrâneos exilados...

Em outro momento, fui designado por Proença Rosa para comparecer a um jantar oficial no Palácio do Povo, enorme construção onde visitantes ilustres eram recebidos. Tratava-se de um primeiro-ministro de país africano, e o corpo diplomático, reduzido naquela época, fora convidado. Como era praxe então, formou-se um círculo diplomático para as autoridades apresentarem o visitante e saudarem os representantes estrangeiros. Foi assim que, jovem secretário, conheci, cumprimentei e troquei algumas palavras com Deng Xiaoping, o líder que iniciou a grande revolução econômica na China.

Em uma ocasião formal, fomos convidados para um jantar pelo chefe do Departamento das Américas da chancelaria chinesa, no mais conhecido e famoso restaurante da cidade, o Peking Duck. Foram servidos 14 pratos com todas as mais inesperadas partes do pato, intercalados por brindes com Moutai, espécie de vodka de arroz, sempre saudando o futuro das relações entre o Brasil e a China.

Tivemos tempo de visitar os lugares mais famosos, como a Muralha da China, a Cidade Proibida e seus templos, até uma igreja católica e lojas de antiguidades que Maria Ignez muito apreciava. Temos ainda hoje um scroll antigo (pergaminho) que ali compramos.

Com a casa alugada para o primeiro embaixador brasileiro, Aloysio Napoleão, sem saber o valor do aluguel à espera em Brasília, e com as contas bancárias abertas e todas a providências administrativas tomadas, voltamos ao Brasil, guardando a lembrança de um país ainda subdesenvolvido, com uma população cujo meio de locomoção era a bicicleta, em que o uniforme era azul e as autoridades vestiam cinza, estas nos poucos automóveis pretos que circulavam pelas ruas.

Voltei mais quatro vezes a Pequim. Impossível reconhecer a cidade onde vivi por três meses em 1975.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 09 01 2024



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