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OS GUARDADOS DA MINHA IRMÃ
Acadêmico: Gabriel Chalita
É ainda tempo de dizer o ano novo. E de viver o ano novo. 

Os guardados da minha irmã


É ainda tempo de dizer o ano novo. E de viver o ano novo. 

Acordei disposta a reorganizar alguns cômodos que poderiam causar incômodo por guardarem o que não deveria ser guardado. Em mim e nas prateleiras que ocupam espaço no espaço em que vivo. As fotografias de dentro e de fora. As caixas de filmes de dentro e de fora. O inutilizado de dentro e de fora.
 
Dentro, resolvo aspergir com esperança. Deixar as lamúrias partirem. Despedir os reclamos, os tentados que não deram certo. Se não deram, não deram. É hora de outras tentativas. De outra roupagem. 

Não sou mulher que acumulou muitos recursos financeiros. Tenho o necessário, inclusive para algumas compras de novidades. Gosto de comprar pouco e prestar atenção ao que compro. E usar. E me sentir vestida com a roupagem do tempo certo. Separei roupas não usadas, há algum tempo, e decidi por agasalhar irmãos meus que não têm o que tenho.

Tenho uma única irmã, Genoveva. Nome grande. Grandes guardados. Somos tão parecidas, somos nada parecidas. Genoveva tem muito mais do que eu. Enviuvou de um marido rico. Herdou parte considerável dos nossos pais. Genoveva nada gasta. E nada desacumula.

Decidi intervir. O ano novo traz novas disposições. Há tempos, ela se fecha no fechado dos seus cômodos. Fui ter com ela. Fui comunicando meus feitos do dia. As limpezas. Os separados. O destino, um asilo próximo de onde vivemos. Começo argumentando. Ela se põe dispersa. Abro as janelas. E ela reclama. Aviso que um ano novo nasceu há pouco. Ela dá de ombros. Argumenta que são invenções do comércio. Eu cantarolo uma música. Ela ri das minhas esquisitices. Esquisito é não cantarolar, é não amanhecer com o amanhecer dos dias. 

Coloco os olhos nas prateleiras repletas de desnecessidades. Sugiro uma limpeza e uma reorganização. Ela diz "não". Insisto. Ela prossegue no intento de não mudar nada. Eu, persistente que sou, explico o tempo, o pouco tempo que nos resta. E falo do asilo que nossa mãe ajudava. Ela se dá por vencida, talvez julgando que iria embora com poucas peças de desuso.

Comecei com ela o que fiz comigo. Caixas de roupas que não eram usadas há décadas. Ela, no início, ficou de costas. Depois, resolveu entender. Entendemos de doar. De doar o que nos outros teria melhor uso. Conversamos sobre os significados. Algum vestido ela dizia se lembrar de algum instante. Eu explicava que os instantes estavam dentro dela e não no vestido nem no sapato nem na bolsa nem nos guardados empoeirados pela inutilidade.

Aprendi que os acumuladores de coisas são assim com os sentimentos. Fechados para espaços novos, para experiências novas. Já errei deixando partir amores por ausência de coragem, por teimosia de nada mudar em mim. Os guardados de outras histórias viciaram o meu agir. E fui orgulhosa para dizer o erro e para pedir perdão. Hoje, tenho um homem bom que divide comigo momentos gostosos de um amor maduro. É bom pensar que ele pensa em mim. É bom deixar alguns gostos por gostar dele. É bom me preparar para o prazer. 

Genoveva julga que o tempo de amar já passou. Ainda vou conseguir dissuadir suas teimosias. O tempo de amar nunca passa. Não fomos feitos para o abraço ausente, para o beijo sem ninguém, para o sonho solitário do que se guarda para si mesmo.

Depois de gastarmos parte do dia abrindo espaços para outros ocupar, insisto que jantemos juntas. Angelo, meu namorado tem um amigo que, há não muito, enviuvou. Minha irmã diz que enlouqueci, mas aceita o convite. Eu sugiro irmos ao salão, nos arrumarmos e, sem muita pretensão, comprarmos alguma vestimenta nova. Agora, há espaço no guarda-roupas, antes tão abarrotado. Ela discorda com a cabeça, mas eu sinto que o sol que empurra as frestas da cortina se faz de cúmplice. 

Ela diz que não tem nenhuma expectativa e eu concordo, melhor assim. Melhor é ir caminhando sem as pressas dos que imaginam antecipar amanhãs. É de hoje que nos devemos vestir nesse início de mais um ano. Os guardados da minha irmã se vão ainda hoje, quem sabe assim encontremos os perdidos. Em algum tempo, ela perdeu a alegria, eu sei disso. E, talvez, tenha padecido eu de impaciência e desatenção.

É ano novo. É tempo de compreender, também, que o amor a quem está mais próximo é o amor mais ensinador do que precisamos fazer para viver bem.

Bem, preciso deixar os escritos agora para começar a escrever de novo o novo ano que está nascendo em nós.

Publicado no jornal O Dia, em 07 01 2024




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