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INIMIGOS DA MÚSICA
Acadêmico: José Renato Nalini
Ignorar os efeitos das melodias sobre os sentimentos, as sensações, o enlevo e o transporte da alma para inauditas paragens parece desumano.

Inimigos da música

É possível não gostar de música? Ignorar os efeitos das melodias sobre os sentimentos, as sensações, o enlevo e o transporte da alma para inauditas paragens parece desumano. Até os irracionais se sensibilizam com a música. O máximo a que se chegaria diz com o estranhamento de certas produções pós-modernas, que são repetição invariável de sons desconcatenados, o reiterar de percussões desvinculadas de uma só nota das claves conhecidas.

Mas esse traço esquisito – não gostar de música – acompanhou algumas pessoas famosas. O célebre Frei Francisco Santa Thereza de Jesus Sampaio, que empolgava os fieis em suas concorridas prédicas, era alguém que desapreciava a música. Para seu ouvido, todo o som que não fosse o da palavra falada, era impertinente.

O pior é que tinha companhia no desapreço às canções.

O Padre Senna Freitas, no perfil que traçou de Camilo Castelo Branco, conta que em 1876, estando em Póvoa do Varzim, assistiu com Camilo ao concerto do notável violoncelista Casela. Alguém que, enquanto viveu, foi talvez o primeiro stradivarius da Europa.

Nessa noite, o artista realizou prodígios. Enfrentou dificuldades que só um perito conseguiria superar. Arrancou do instrumento de soluços a gemidos, mais ainda ofereceu sons de cóleras, tempestades, risos de Offenbach, trenos de Chopin.

A certa hora, Senna Freitas procurou em Camilo Castelo Branco um sinal de emoção, um gesto de aplauso e coisa alguma encontrou. O homem estava insensível, inerte e até entediado. O Padre, impaciente, interrogou-o: - “Então? Que lhe parece? Simplesmente magnífico, não é?”

- “Eu, meu amigo, disse Camilo, com sangue frio britânico e tédio comprimido, “eu não gosto de música!”.

- “Isto lá é possível?”

- “Pois é como lhe digo. Faço só uma exceção: dou o beiço pelo fado gemidinho na guitarra”.

Além de Sampaio e de Camilo, acrescente-se outra excepcional figura literária: Victor Hugo.

Uma noite, aquele que Martins Fontes considerava “o poeta maior que o mar”, quebrou, inutilizou o piano. Quando, pela manhã seguinte, a família, em meio a profundo espanto, interroga quem havia sido o autor de tamanho delito, respondeu Victor Hugo:

- “Fui eu!”

- “É uma selvageria!”.

- “Que lhe fez o piano?”

- “Fez música!”.

Pode parecer incrível, mas continuam a existir pessoas famosas que não gostam de música. Na verdade, são seres humanos que não têm interesse em música, em lugar de nutrir uma ativa aversão a ela. Isso pode resultar de uma condição neurológica chamada anedonia musical, situação que os impede de sentir prazer com a música. Anedonia musical difere da agnosia musical, que é a incapacidade de reconhecer a música. Os que têm anedonia musical conseguem compreender o que estão ouvindo, mas não se emocionam. São incapazes de extrair prazer ou sentimento com a música, o que ocorre com a imensa maioria dos humanos.

A anedonia musical é causada por uma conexão reduzida entre duas regiões do cérebro: o córtex, responsável por processar sons, e o núcleo accumbens, que proporciona a sensação de prazer e recompensa.

Dentre os famosos do presente, Zayn Malik, que integrou a banda “One Direction”, já afirmou que não é fã da música da banda e que se sentia limitado como artista. Madonna disse que preferiria nunca mais cantar “Like a Virgin” novamente. Kanye West falou que não gosta muito de “Gold Digger”, música que fez só para ganhar dinheiro. Ariana Grande, Mandy Moore e Selena Gomez também já expressaram descontentamento com algumas de suas primeiras músicas.

Por outro lado, Chico Buarque deve gostar muito e foi advertido a não cantar mais “Com açúcar e com afeto”, música machista, para uma patrulha atuante e castradora de maravilhosas produções do nosso compositor maior.

Quanto a mim, considero que não gostar de música é doença, mal do cérebro, que a ciência e a tecnologia vão conseguir debelar. Na minha original simploriedade, continuo a considerar verdadeira a dicção sambista que consagrou o “quem não gosta de samba, bom sujeito não é; é ruim da cabeça, ou doente do pé”.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 13 12 2023



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