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Acadêmico: José Renato Nalini Asas propiciadas pelos livros, seriam cúmplices das asas físicas de aves que o progresso condena à extinção.
A fascinação das asas Quem escolhe estudar direito sinaliza afeição à humanidade. Ou deveria indicar que essa opção implica em respeitar a dignidade humana e aprimorar-se rumo à perfectibilidade, até ser capaz de cumprir a regra de ouro de amar o semelhante. Daí a familiaridade do jurista, cujo curso já se chamou Ciências Jurídicas e Sociais, com as letras, com a poesia, com o encantamento. Inúmeros magistrados foram poetas. Lembro-me de Gregório de Mattos, Alphonsus Guimarães, Fagundes Varella, Bernardo Guimarães, Tomás Antonio Gonzaga e Vicente de Carvalho, o poeta do mar. Mas a Providência continua a fornecer magistrados poetas. Como Fernando Armando Ribeiro, juiz mineiro, que escreveu a obra “A fascinação das asas”, com que denomino esta reflexão. Já publicara “Colheita”, “Shakespeare e Cervantes: diálogos entre direito e literatura” e “Espectros poéticos da justiça”. Produziu ainda “Retratos de Primavera e outras estações”, este prefaciado por Angelo Oswaldo de Araújo Santos, o Prefeito de Ouro Preto responsável pela preservação daquele tesouro pátrio. Ao prefaciar, o alcaide ecológico afirma que “a poesia é a manifestação mais clara da perplexidade dos humanos diante do mistério do ser no mundo. Alumbramento e angústia acendem na palavra o lume poético que estremece o homem e a mulher assombrados pelo enigma”. Os poemas de Fernando Armando lembram os haikais japoneses. São sintéticos, mas plenos de conteúdo. “As águas do lago empoçam em minh’alma cristalina vontade de também me aclarar”. Ou esta reflexiva “Lição”: “para contemplar (devidamente) a Lua, é preciso esquecer o peso da Terra”. Amigo da natureza, o poeta é sensível em relação à criatura alada: “No alvoroço dos passarinhos pousa a paz e faço ninho”. Em “Alvorada” ele diz: “Se aves me voam/silêncios me pousam/habito vazios/para florescer/auroras”. Ora, a obra “A fascinação das asas” é a narrativa de quem procura se desvencilhar da aridez da rotina para caminhar pela floresta e se entregar à contemplação das aves. Alguém que se inebria com o som das araras, que consegue permanecer imóvel a observar o voo circular e que obtém a sensação de transcendência e perda da realidade. O amor pelas aves é dom raríssimo, que impregna pouquíssimas pessoas. A incompreensão começa na família, que ainda se apega à prisão de calopsitas e não entende porque o aniversariante de sete anos não se alegra com o presente. Procurou saber o que havia de literatura sobre as harpias e mesmo na prisão, seus olhos miravam o alto, na observação de atobás, fragatas e gaivotas. O tempo em reclusão foi necessário e suficiente à descoberta de outras asas metafóricas: os livros. Os livros nos levam para passeios infinitos, sem limites, sem passaportes, sem a espera angustiante nos aeroportos, sem as filas, sem a burocracia. Ainda assim, como são poucos os que viajam na leitura! Asas propiciadas pelos livros, seriam cúmplices das asas físicas de aves que o progresso condena à extinção. Como bem observou o marinheiro do barco em que o personagem do romance viajava, poderia ser a última vez que se assistiria à revoada de pássaros em torno à embarcação. “Coisas do progresso, como dizem por aí!”. As atividades da mineração costumam ser madrastas para com a natureza. Aumenta, a cada dia, o número de espécies ameaçadas. A exuberante biodiversidade brasileira é sacrificada e exterminada, antes mesmo de ser adequadamente catalogada. Nada como alimentar a esperança. Esperança de que mais poetas habitem a carcaça dos juízes, dos promotores, dos defensores, dos procuradores, dos advogados. Dos políticos, dos tecnocratas, dos agentes do capitalismo selvagem. Daqueles que, se viessem a ser convertidos, compreenderiam que a natureza não consegue se defender, a não ser por meio de cataclismos, de catástrofes, de fenômenos extremos e destrutivos. Manter a esperança do poeta-juiz Fernando Armando Ribeiro, que no poema “Ribeiro”, usa com duplicidade de seu nome de família e do curso d’água que aos poucos também desaparece: “Ribeiro/Havia ali um bosque/uma lebre/um regato/ O bosque foi destruído/A lebre partiu num salto/Mas minh’alma/meu nome/ainda fluem nesse regato”. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 24 11 2023 voltar |
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