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OS DOIS ULPIANOS
Acadêmico: José Renato Nalini
Nomes que eram comuns aos estudantes de outrora e que hoje causam estranheza a quem se propõe a estudar Direito e não sabe exatamente o que vai extrair desse diploma.

Os dois Ulpianos

Quem estudou ciências jurídicas no tempo em que ainda havia a disciplina “Direito Romano”, sabe quem foi Ulpiano. Seu nome completo era Eneu Domício Ulpiano, foi um famoso jurista romano nascido em Tiro, no ano de 150. Ele foi o primeiro assessor do prefeito do pretório Papiniano, durante os governos de Septímio Severo e Caracala.

Sua obra influenciou fundamentalmente a evolução dos direitos romano e bizantino. Tanto que isso lhe garantiu ser citado no “Digesto” de Justiniano, parte importante do Tratado de Direito Civil “Corpus Juris Civilis”. Várias de suas citações o celebrizaram e ainda residem no foro, ao menos nas peças dos mais experientes.

Foi ele quem afirmou, por exemplo, que “os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu”. Mas também: “o direito é a arte do bem e da justiça”, “o que agrada ao príncipe tem força de lei” e “a validade do casamento não é o fato de ter sido consumado ou não, mas em seu consentimento mútuo”.

Talvez a mais famosa frase, hoje repetida por todos, até pelos jejunos em direito, é a “dura lex, sed lex”, ou “a lei é rigorosa, é severa, mas é a lei”.

Pois as Arcadas tiveram também o seu Ulpiano. Era José Ulpiano Pinto de Souza, que sucedeu a Vicente Mamede na cátedra. Incrível que, já naquele tempo, havia estudantes que nada assimilavam do curso. Tanto que chegaram a pensar que ele era “o” Ulpiano de Roma. Um aluno chegou a dizer: - “Com aquela cara de moço, chegar a ser o que ele é! Engraçado, ninguém diz que ele é italiano!”.

Era o mesmo discípulo que confundia Savigny com Madame de Sevigné, num verdadeiro “samba do crioulo doido”.

Pois o “nosso” Ulpiano chegou a disputar a Cadeira de Direito Romano, vaga com a morte de Frederico Abranches. Mas o governo preferiu Reinaldo Porchat. Ulpiano não se conformou e recorreu à Justiça. O juiz Aquino e Castro julgou a seu favor. Mas o STF cassou a decisão, acompanhando o parecer de Epitácio Pessoa, então Procurador da República.

Só com a morte de Mamede Ulpiano chegou à cátedra. Era um dos professores de maior prestígio. Boníssimo, frequente e pontual. Sempre conseguiu dar conta da matéria. Suas preleções eram objetivas, embora recorresse com reiteração a tons altos e baixos.

Conhecia a normatividade vigente e repetia, de cor, dezenas de artigos de lei, sem confundir ou deixar faltar uma só palavra. Outras qualidades eram o espírito de justiça e a simpatia.

Os menos avisados, quando ouviam Reinaldo Porchat mencionar inúmeras vezes o Ulpiano da antiga Roma, pensavam que era o mesmo lente de Direito Civil, tão jovem, tão simpático e já tão célebre...

Tinha todas as condições para ser prestigiado. Conquistara o magistério por concurso, em 1896, tendo como concorrente outro professor de muito apuro, Manuel Pereira Guimarães.

Ulpiano aposentou-se precocemente. Os contemporâneos lamentaram que a mocidade das Arcadas perdeu um mestre completo. Mais jurisconsulto do que advogado, nunca se entregou às lides forenses, embora aceitasse fazer parte do Instituto da Ordem dos Advogados, o braço intelectual e acadêmico da poderosa OAB.

Embora fosse bastante ligado a Frederico Vergueiro Steidel, um dos líderes da Liga Nacionalista de São Paulo, não consta participasse ativamente dos propósitos dessa organização.

A Liga Nacionalista Paulista foi criada em 1916, sob inspiração de Olavo Bilac, propagador das ideias que alimentaram esse grupo. Dentre elas, o serviço militar obrigatório, a alfabetização, o patriotismo, a educação moral e cívica. Frederico Vergueiro Steidel era um entusiasta da entidade e militou, arduamente, para a disseminação de seus ideais em todo o Estado de São Paulo.

Nada obstante a pureza de propósitos, a Liga de Defesa Nacional de São Paulo só durou oito anos. Foi extinta por Arthur Bernardes em 1924. Sobre sua atuação em solo bandeirante, interessante consultar o texto “Ideologia e atuação da Liga Nacionalista de São Paulo (1917-1924), inserto em Revista de História nº 116, 1984, p. 67/74.

Ideias análogas sobrevivem e ciclicamente ressurgem, para inspirar movimentos de várias tonalidades ideológicas. O ensino do Direito se compraz com exemplos legados pelos imbatíveis Romanos. Há professores tradicionais que não se servem de outros prenomes, que não os utilizados em Roma, para exemplificar quase todas as ocorrências que dão margem a consequências jurídicas. Haja Tício, Caio, Névio, Semprônio. Nomes que eram comuns aos estudantes de outrora e que hoje causam estranheza a quem se propõe a estudar Direito e não sabe exatamente o que vai extrair desse diploma de bacharel em ciências jurídicas.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 22 11 2023



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