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VICENTE MAMEDE DE FREITAS
Acadêmico: José Renato Nalini
Um desses lentes da São Francisco foi Vicente Mamede de Freitas. Personalidade tão característica que mesmo os seus não alunos a conheciam minuciosamente e sobre ela discutiam.

Vicente Mamede de Freitas

Era praxe no bacharelado em direito, que professores de disciplinas que eram ministradas em anos subsequentes, acompanhassem as turmas. Direito Civil, por exemplo, era matéria para os cinco anos. O mesmo professor podia verificar o aproveitamento do alunado e permanecia com ele durante todo o período.

Alguns catedráticos adquiriam tanta fama, que alunos de outras turmas assistiam suas preleções. Um desses lentes da São Francisco foi Vicente Mamede de Freitas. Personalidade tão característica que mesmo os seus não alunos a conheciam minuciosamente e sobre ela discutiam.

Era homem enclausurado. Nunca foi visto na rua, a não ser a caminho da Academia. Seus métodos eram austeros. Fazia os alunos decorar os livros, assim como ele os decorara. Por isso era criticado por luminares como Pedro Lessa.

Mamede era preciosista. Fazia questão dos termos próprios. Se alguém expusesse o assunto atropelando a terminologia, interrompia com a mesma frase: - “Moço, espere...Vamos, antes de tudo, dar nome aos bois”.

Tinha hábitos incorrigíveis. Amava a tríade sagrada: Augusto Teixeira de Freitas, Lafaiete Rodrigues Pereira e Antônio Joaquim Ribas, a quem chamava – singelamente – “o Conselheiro”. Ao avisar das provas, advertia a classe: - “Os moços encontrarão a matéria tratada no Conselheiro Lafaiete. Teixeira de Freitas também dá. E o “Conselheiro” dá e até abunda”.

Ainda que impusesse pavor à turma, esta não resistia à gargalhada. Os alunos o atormentavam também em sua casa. Como narra Spencer Vampré: “Assim tinha o dr. Mamede uma graciosa filha, com o apelido de “Quinota”. Um aluno, à véspera do exame, interpela o professor, à porta de sua casa: “Dr. Mamede, vim ver qui nota...”. “Quinota? – fez Mamede, franzindo o sobrolho por detrás dos óculos escuros.

- “Sim – redarguiu calmamente o estudante – “que nota tenho... e se posso prestar o exame amanhã...”.

Waldemar Ferreira, o grande comercialista, foi seu aluno e tinha dele opinião desfavorável: “Sua vida era a mesma de cinquenta anos antes. Mesmíssima a sua cara, os seus costumes, o seu caminhar para a Academia. Corpo e alma juntaram-se numa anquilose longuíssima. Preso em tal espartiho, estanhou-se-lhe o espírito, obcecando-se. Transformou-se numa múmia animada. Desta sorte, enrijou-lhe o caráter. Benevolência, bondade, generosidade, foram atributos exóticos, que nele não encontraram guarida. Acrescente-se a falta de energia, de altivez, de confiança em si mesmo, e ver-se-á para logo, que cômicas eram as aulas de direito civil no ninho das Águias”.

Dessa opinião não partilhavam todos os alunos. Havia quem o considerasse proficiente, pois fazia com que o estudante, ao decorar os livros, alguma coisa aprendesse.

Permaneceu durante muitos anos à frente da Cátedra e exerceu a Diretoria da Faculdade. Mas a idade e o depauperamento contribuíam para a nenhuma disciplina em suas aulas. Começavam repletas, terminavam vazias. Quatro quintos dos acadêmicos, logo após à chamada, escapavam pelas janelas escancaradas, sem a menor cerimônia. Entre os restantes, alguns chegavam a jogar cartas, enquanto outros se entregavam à mais libertina algazarra.

Mas no fim do ano, a vingança desabava cruel: reprovava todos os alunos. Só veio a ocupar a diretoria pouco antes de morrer. Datam dessa época as mais incríveis estudantadas daquele tempo. Ele não tinha medo, enfrentava a rebeldia da rapaziada, mas não conseguia dominá-la.

Era melancólico vê-lo no fraque preto antiquado, cabelo preto mercê da tinta, pálido, faces encavadas, cujas sombras os óculos adensavam. Pedia ordem, escoltado por Joaquim Delfim, secretário de fato que foi das Arcadas, durante a gestão de Mamede.

A crueldade juvenil se fazia presente. Um aluno, Adolfo Araújo, o definia: “Vicente Mamede é um osso atravessado na garganta da Academia”. Com sua morte, em 1908, desapareceu a figura mais curiosa da Academia. Com ele partiu a encarnação da tradição acadêmica, na sua conformação de antanho.

Deixou um filho, de igual nome, que exerceu a Magistratura paulista.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 20 11 2023



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