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O LADO RUIM DA COISA BOA
Acadêmico: José Renato Nalini
Há coisas ruins nas novidades tecnológicas, mas o lado bom supera a ruindade. Cabe a cada um de nós fazer com que tal constatação se concretize e gere benefícios para uma nacionalidade cansada de estagnação ética.

O lado ruim da coisa boa

A ficção científica foi superada pela realidade. Ciência e tecnologia são mais fabulosas do que a imaginação humana. Isso excita e assusta. Quem ler o livro “The Coming Wave” (“A onda que está chegando”, em tradução livre), de Mustafa Suleyman, sentirá as duas sensações.

Onda é um verbete que já esteve na literatura, basta lembrar do livro “A terceira onda”, de Alvin Toffler e também na música, a linda canção “Wave”, de Tom Jobim, que até Sinatra interpretou. Mustafa, que é um dos três fundadores da DeepMind, empresa de pesquisa de inteligência artificial sediada em Londres e Presidente Executivo da startup Inflection, é uma autoridade no assunto.

Ele sustenta a sua posição nas revoluções gêmeas da Inteligência Artificial e da biologia sintética. O verdadeiro novo mundo se descortina a partir dessas duas realidades. A Inteligência Artificial tem potencial para desvendar os derradeiros segredos do Universo, curar doenças, ampliar os limites da imaginação. Já a biotecnologia é capaz de criar vida e revolucionar a agricultura.

Nada obstante, a situação é uma daquelas em que o otimismo da vontade pode ser sobrepujado pelo pessimismo do intelecto. Se até agora o desafio da tecnologia era encontrar uma fórmula de liberação de seu poder, a equação se inverteu. Como conter poder e potencialidades da tecnologia, quando suas capacidades explodiram e o custo para explorá-las a cada dia se torna menor?

Sabe-se que os humanos têm enorme dificuldade em cultivar a ascese. Em se conter. Se algo é possível, esse algo se faz. Sem indagações éticas, sem reflexão, sem qualquer discernimento mais sensato.

A Academia é que deveria alertar os humanos dos riscos envolvidos no desenvolvimento dessas inovações que a cada dia se aprimoram. Pois a inteligência artificial tem tudo para aumentar e acelerar a desinformação de forma exponencial. Chegar à suicida guerra cibernética em escala apavorante. Guiar milhares de drones assassinos contra alvos inocentes, causar gravíssimas interrupções energéticas e econômicas. Colocar em risco a segurança universal.

Já a biologia sintética é capaz de criar patógenos mortais de baixíssimo custo. A escala de turbulência é apavorante, crescente e mais real do que poderia ou deveria parecer.

Já que não se pode pensar em contenção, em pausa para reflexão, o melhor é extrair daquilo que se conseguiu criar, o melhor possível para a resolução dos grandes problemas que nos afetam. O maior deles é a mudança climática gerada pela emissão dos gases venenosos causadores do efeito-estufa. Sabe-se como corrigir ou mitigar as consequências deletérias desse fenômeno. Desmatamento zero, replantio das áreas degradadas, estímulo à descarbonização, transição energética. Ao lado disso, mas convergente, redução das desigualdades sociais e esmero na produção de um processo educacional de qualidade e adequado a suprir as deficiências acumuladas durante séculos.

Isso se faz com o uso apropriado das modernas tecnologias e do hibridismo que seus aplicativos propiciarem. O livro de Suleyman oferece, nas conclusões, algumas recomendações factíveis. Uma delas é investir, pesadamente, no trato das questões de segurança. Esta não tem sido a tônica das pesquisas em curso, mais focadas em produzir empreendimentos lucrativos.

Quanto à redução das desigualdades, cabe à sociedade civil impor ao governo as diretrizes corretas. Não é possível que o “celeiro do mundo” seja conivente com a fome de tantos milhões de brasileiros. Chega a ser bizarro que nos mesmos espaços físicos estejam a conviver a riqueza mais escandalosa e a miséria mais clamorosa. Isso é absurdo inominável.

Educação também precisa de um choque. Deixar que apenas o governo se encarregue dela é lesivo para a humanidade. Os governos, hoje conduzidos por uma política profissional estéril e rasteira, preocupam-se mais com o dia-a-dia, com a rotina da malversação dos escassos recursos públicos, com a eleição e com a matriz da pestilência chamada reeleição.

Educação de qualidade é assunto muito sério para se relegar ao governo. E o constituinte de 1988 foi muito sábio ao elencar, no artigo 205, os responsáveis por esse direito de todos que é a educação: família, Estado e sociedade. Esta é que tem de lembrar o governo de que ele é mandatário. Mero servo cumpridor da vontade da população. O único soberano é o povo. Isso é o que diz a Constituição de 1988.

Há coisas ruins nas novidades tecnológicas, mas o lado bom supera a ruindade. Cabe a cada um de nós fazer com que tal constatação se concretize e gere benefícios para uma nacionalidade cansada de estagnação ética.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 16 11 2023



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