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A SAGRAÇÃO DA PROPRIEDADE
Acadêmico: José Renato Nalini
A propriedade é um dos direitos fundamentais de primeiríssima dimensão.

A sagração da propriedade

A propriedade é um dos direitos fundamentais de primeiríssima dimensão. Está no caput do artigo 5º da Constituição da República. Integra a dignidade humana. É natural à criatura racional pretender um espaço exclusivamente seu, dentro do qual possa exercer, em plenitude, as prerrogativas de senhor. Daí o apego emocional à casa própria. O direito à moradia ter sido incluído no rol dos direitos fundamentais sociais.

Lafaiete Rodrigues Pereira, considerado “o príncipe dos civilistas pátrios”, mas que não fruía da estima de Capistrano de Abreu, que o chamava “sangue de peixe”, emprestava à propriedade um caráter sagrado. “A subsistência do homem, a cultura e o engrandecimento de suas faculdades mentais, a educação e o desenvolvimento dos germes que a mão da Providência depositou em seu coração dependem, essencialmente, das riquezas materiais”.

Completava o Mestre: “A propriedade é sagrada porque tem sua razão de ser, a sua finalidade, nos elevados destinos do homem”.

Exatamente por ser sagrada a propriedade, sacratíssimos devem ser os direitos substanciais do homem, cujo exercício é a finalidade da vida. Sacratíssimo será, portanto, o direito substancial de dignidade, ou seja, o direito do homem ser tratado como homem e que tem por fundamento a própria natureza humana. O constituinte de 1988 foi sábio ao erigir o princípio da dignidade humana em superprincípio fundante. Na clássica visão de Hannah Arendt, o humano tem supremo direito a ter direitos e a poder exercê-los.

Se hoje a propriedade é direito basilar, insculpido no dispositivo que elenca apenas cinco elementos – vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança – nem sempre isso foi tão claro. Antes da vigência do Código Civil de 1916, obra magna e insuperável, produzida pelo talento de Teixeira de Freitas, definir a propriedade exigia esforço dos docentes. Dino Bueno, ou Antônio Dino da Costa Bueno, foi um respeitado lente das Arcadas, encarregado de ensinar Direito Civil, que Miguel Reale conceituava como o direito constitucional da cidadania. Árida seara, antes do monumento codificado em 1916 e que serviu de inspiração para análoga normatização argentina. Era necessário buscar seus fundamentos primeiro em Roma e, depois, nas codificações e leis portuguesas, na legislação dos povos cultos, na ciência dos tratadistas mundiais. Desse labirinto, Dino Bueno o trazia aos alunos em forma escorreita. A concisão e a sabença caminhavam paralelamente às diretrizes elaboradas por Lafaiete Rodrigues Pereira.

O Direito Civil passou por uma fase de certo obscurecimento na primeira metade do século passado. É que ganhou ênfase e excessiva força o Direito Processual Civil.

O processo era considerado “adjetivo” à substância: o direito civil, material, que seria “qualificado” pelo processo. Este apenas deveria servir para tornar operacionável o direito. Por uma coincidência, a explosão do nazismo fez com que o Brasil recebesse muitos estudiosos que receavam a perseguição instaurada na Alemanha. Dentre eles, Tulio Ascareli, Marco Tulio Liebman e a talentosa Ada Pellegrini. Eles fundaram a chamada “Escola Paulista de Processo”. E eram tão brilhantes, que o direito civil permaneceu esquecido, enquanto o Direito Processual, Civil e Penal, a Teoria Geral do Processo ganhasse força com a adesão de Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe, Araújo Cintra, Waldemar Mariz, Arruda Alvim e outros estudiosos.

O “Código Reale”, de 2002, trouxe novamente o Direito Civil à baila. A eticidade era o seu eixo, tantas vezes reafirmado pelo jusfilósofo Miguel Reale. E teve curta vida. Já existe a proposta de um novo Código. Pondera José Eduardo Faria que ao menos quatro indagações devem ocupar a mente dos reformuladores da codificação: 1. A dimensão do Código, com mais de dois mil artigos; 2. A globalização dos mercados de bens, serviços e finanças e a consequente precarização da soberania nacional; 3. Descompasso entre a velocidade das transformações tecnológicas e a morosidade parlamentar; 4. Tensão entre continuidade e mudança no direito positivo.

Os estudiosos da ciência jurídica têm o dever de contribuir no debate e auxiliar a elaboração desse novo diploma. A própria codificação é um enigma e há quem sustente que é um projeto superado. A personificação dos autores é outra questão a ser meditada. Mudar por mudar? Vale a pena? O importante é contar com uma educação que prime por levar em consideração postulados inamovíveis, como a inviolável sagração da propriedade e a concreta observância do princípio da dignidade humana.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 11 11 2023



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