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DESTROÇAR NÃO É DE HOJE
Acadêmico: José Renato Nalini
A transformação por que passa a capital incomoda seres sensíveis como Ignácio de Loyola Brandão, que lamenta o desaparecimento do ambiente que aprendeu a amar.

Destroçar não é de hoje

A transformação por que passa a capital incomoda seres sensíveis como Ignácio de Loyola Brandão, que lamenta o desaparecimento do ambiente que aprendeu a amar. Fernando Reinach também escreveu, no “Estadão” de 2 de setembro, o instigante artigo “Os trouxas de Cerqueira César”. Lamenta que as incorporadoras vendam um bairro que não mais existirá, assim que elas ofertarem seu produto.

Condenados a viver num paliteiro de concreto, onde o verde desaparece principalmente aos fins de semana, quando acordamos com o irritante som da motosserra, parece incrível que os paulistanos não se deem conta do maior perigo que ronda a humanidade: a mudança climática.

Imagine-se, então, o que ocorreu com José Maria Lisboa, considerado um hífen entre São Paulo velha e São Paulo nova. Ambas o esqueceram, pois o que sobra é o patronímico de uma rua nos Jardins. Hoje, um “Jardim de caçambas”, não mais de sibipirunas, jacarandás e tipuanas.

Ele morava à rua Barão de Itapetininga, num chalezinho verde, cercado de roseiras e habitado por inúmeros pássaros.

São Paulo se despedira da cidade secundária e assumira sua vocação de metrópole. Tudo se valorizava, principalmente os arredores do antigo triângulo. O centrinho provincial queria espraiar-se, para corresponder ao adensamento da periferia.

Lisboa viu-se logo incomodado. Surge um dia alguém diante de seu chalezinho: - “Senhor Lisboa, tenho um comprador para esta sua casa”. Ele, quase colérico: - “Comprador para a minha casa? Mas isto é uma audácia! Quem é que lhe disse que quero vender esta casa?”.

- “Ninguém, senhor Lisboa, mas a oferta que lhe trago é tão vantajosa que não pude sopitar minha ousadia. Perdoe-me”.

Lisboa, para não desmentir sua jovialidade e lhaneza, quebrou o mal estar e indagou: - “Pois diga lá o meu amigo quanto oferecem por minha choupana”. – “Duzentos e cinquenta contos de réis”.

Lisboa se espanta: “Duzentos e cinquenta contos de réis...Realmente, é muito dinheiro, é uma fortuna, é pagar trinta vezes mais... porém...”

- “Porém, não vendo nem assim esta casinha adorada em que vivi minha mocidade, vive minha velhice, morreu minha mulher, vivem meus filhos, brincam meus netos...”. E foi despedindo, delicadamente, o importuno.

Mas, já ao portão, para dizer um absurdo ou pedir qualquer coisa maior que o céu, falou ao desapontado intermediário:

- “Ainda se você me oferecesse o dobro...”

- “Quinhentos contos?”

- “Sim, quinhentos contos...

- “Dê-me sua palavra!”

- “Está dada”.

Dias depois, o corretor voltou para fechar negócio pelos quinhentos contos. A palavra fora empenhada. Lisboa saiu da São Paulo velha e foi viver seus derradeiros dias na São Paulo nova. Português de origem, paulista de caráter, não desacreditaria sua barba branca. Mas o intermediário, na alegria de quem obteve êxito em sua transação, não notou os óculos escuros do velhinho esconderem as lágrimas que os olhos murchos, como duas fontes secas, vazaram ainda uma vez.

Isso se passou em 1912. Diz-se que, desde então, perdeu Lisboa a sua alegria.

Algo que pode estar acontecendo agora. A resistência de alguns que se recusam a alienar sua propriedade para dar lugar a mais um edifício tem limites. E o tempo, algoz que leva todos embora, acaba com qualquer prurido. Os herdeiros não costumam nutrir a mesma afeição ao espaço-lar. O preço é mais sedutor do que as lembranças acumuladas.

José Maria Lisboa militou no jornalismo por sessenta e dois anos. Desde a primeira semana de sua chegada a São Paulo, em 1856, até seu falecimento, em 1918. Primeiro no “Correio Paulistano”. Em seguida, para Campinas, onde editou a “Gazeta de Campinas”. Finalmente, em 1875, quando se tornou realidade a publicação de uma folha essencialmente republicana, participou do nascimento da “Província de São Paulo”, que se converteu no poderoso “O Estado de São Paulo”, o nosso Estadão.

Quem o levou foi a “espanhola”. Mas a sua jovialidade, o seu estilo galhofeiro, já havia perecido, quando se viu obrigado a honrar a palavra e a ceder o seu chalezinho, o seu roseiral e o passaredo à volúpia da especulação imobiliária.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 27 10 2023



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