Compartilhe
Tamanho da fonte


EQUÍVOCOS HISTÓRICOS
Acadêmico: José Renato Nalini
A humanidade enxergava o ambiente como entidade submissa à superioridade da razão.

Equívocos históricos

Os tempos mudam e as consciências também. Hoje, alarmada com os nefastos efeitos das alterações climáticas, a sociedade se acostumou a respeitar a natureza. Esta não é a inimiga do homem, porém o habitat que lhe foi destinado para desenvolver suas potencialidades, existir, percorrer as poucas décadas disponíveis, até que se despeça desta aventura.

Nem sempre foi assim. A humanidade enxergava o ambiente como entidade submissa à superioridade da razão. À luz da doutrina cristã, o mundo foi criado para que nele reinasse a criatura mais próxima à divindade. O homem, feito à imagem e semelhança divina.

Por isso as atrocidades cometidas contra uma natureza luxuriante e dadivosa, como aquela que os jesuítas encontraram em Piratininga, quando se propuseram a fundar um colégio e começar uma nova civilização no planalto. Por sinal, os indígenas – providos de uma sapiência muito mais próxima à natureza do que a dos humanos “civilizados” – já viviam em harmonia nestas plagas. Pródigas em boas águas.

A escolha indígena e a opção jesuítica se alicerçaram exatamente neste ponto: a abundância de água doce. Garantidora da vida plena. Água para dessedentar os humanos, mas também os animais, água para propiciar o crescimento de vegetação que assegurasse o ameno clima paulistano.

Grandes rios e inúmeros córregos e riachos serviam o Planalto. O rio Tamanduateí, por exemplo, formado pelas águas do antigo “Ribeirão dos Couros”, que partia da região de São Bernardo – veio a se converter em rio navegável. Os afluentes do Tamanduateí formavam diversos braços de rios e córregos que cruzavam vários trechos dos bairros do Ipiranga, Cambuci, Moóca e Brás – e iam desaguar no Anhembi, que era o nome indígena do poluído Tietê.

Dentre estes, existiu outro rio caudaloso, que o “progresso” eliminou. Ele se formava na Baixada do Glicério, numa espécie de letra Y; à direita, um dos braços margeava as imediações da rua da Figueira e o outro, à esquerda, margeava por detrás do antigo Hospício, de onde ia serpenteando até alcançar a encosta da Tabatinguera. Ali, seu leito penetrava e atravessava toda a extensão da antiga rua de Baixo, atual 25 de março. Passava em frente ao velho Mercado Municipal, prosseguia em direção ao bairro da Luz, pela antiga estrada do Guaré, hoje substituída pela Avenida Tiradentes e Voluntários da Pátria. Juntava-se com as águas do rio Anhangabaú e ia desaguar no Tietê.

São Paulo teria sido diferente se respeitada a natureza. Nas imediações da Várzea do Carmo, no princípio do século XIX, haviam-se formado divesos “portos”, com seus armazéns próprios, que se destinavam a recolher e a armazenar toda espécie de mercadorias e produtos. Principalmente os gêneros da terra, tais como frutas, legumes e cereais. Tudo era transportado por barcos e canoas que por ali navegavam provenientes de várias regiões ribeirinhas de São Paulo.

Esses portos eram chamados “Porto da Tabatinguera”, da “Figueira”, do Anhangabaú, “Beco das barbas” ou da “Barça”. Desses antigos “portos”, só restou a memória do nome evocativo da atual Ladeira “Porto Geral”, também conhecida como Ladeira do Tamanduateí, exatamente onde se localizara o Porto das Barbas ou da Barça.

O Tietê não teria se transformado nessa imensidão pútrida, malcheirosa e venenosa, atestado evidente da ignorância humana. Pensar que já tivemos durante o governo de João Teodoro Xavier, em atenção aos moradores da Várzea do Carmo, a construção de uma pequena área de lazer, conhecida por “Ilha dos Amores”.

Em lugar do aproveitamento das vias fluviais naturais, presente espontâneo da Providência, o povo paulistano preferiu aterrar a Várzea do Carmo. Desconhecimento total de que várzeas são benéficas, constituem uma espécie de mercado natural de alimentos, não só vegetais, mas da fauna. Aves e peixes são abundantes nelas.

Preferimos construir uma cidade para os automóveis. Poluentes, egoístas e causadores de toda espécie de transtorno. Suportar o trânsito paulistano é um verdadeiro suplício. A canalização dos córregos foi um erro histórico pelo qual pagamos hoje e não enxergamos perspectiva alguma de devolver a feição natural de um planalto exuberante, piscoso e agradável, substituído por uma selva de concreto e piche que abrevia a existência de qualquer mortal.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 24 10 2023



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.