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Acadêmico: José Renato Nalini Quem se propõe a escrever sobre os outros, ainda que falecidos, corre o risco de vir a ser desmentido por herdeiros.
É isso que dá Quem se propõe a escrever sobre os outros, ainda que falecidos, corre o risco de vir a ser desmentido por herdeiros. Foi o que aconteceu com Aureliano Leite, que retratou José Luís de Almeida Nogueira, o clássico autor das “Reminiscências” da São Francisco. No seu livro “Retratos a pena”, galeria de homens de minha admiração, ele fala de Almeida Nogueira, justamente para lembrar que o autor chegara a ser agredido por rememorar estudantadas dos acadêmicos. A mais bizarra foi a que proveio de um juiz de direito do interior. Não gostara da narrativa de um episódio e endereçara a Almeida Nogueira “uma carta jorrante de cólera disfarçada em mágoa”. Sentia-se atingido como a primeira autoridade da comarca, “onde sua toga de magistrado integérrimo conquistara real prestígio”. Almeida Nogueira era um homem elegante. Publicou a carta do juiz e confirmou o relato em todas as suas minúcias. Já Aureliano Leite continua a traçar o seu perfil desse cronista que eternizou os primeiros anos das Arcadas. Almeida Nogueira falecera havia dez anos já. E Aureliano fala que ele já é desconhecido. Só que resvalou em areia movediça ao falar da cultura do retratado: “Dizem, e disso deu sempre provas, que tinha uma cultura múltipla, se bem que mais periférica”. E critica sua metodologia como lente de Economia Política da São Francisco: “Perdia imenso tempo no determinar o objeto da matéria. Basta dizer que levava o ano nisso. Passava em revista, para repelir uma a uma, um mundo de definições. Ao cabo, depois de afirmar que “economia política é a ciência das trocas ou ciência do valor”, chegava novembro e, com novembro, os exames”. Acrescenta que, pelas costas, o chamavam de “José Fardão”. Isso porque mandara fazer farda de deputado, logo que se viu eleito pela primeira vez. O episódio é narrado por Afonso Celso, no livro “Oito anos de Parlamento”, ao relembrar os deputados notáveis entre 1881 e 1889. O texto de Aureliano é encomiástico a Almeida Nogueira. Termina com: “Almeida Nogueira teve substitutos na sua cadeira, regida, hoje, pelo espírito culto e equilibrado de José Joaquim Cardoso de Melo Neto. Mas, homem de sua multiplicidade mental, consorciada a seu feitio amorável, ainda lhe não preencheu o vazio em o convívio paulistano de inteligência”. Isso não impediu que uma filha de Almeida Nogueira, Domiciana, escrevesse ao “Diário Popular”, com delicada, mas firme revolta: “O tempo faz esquecer os mortos e os vivos se aprazem em os desfigurar! Almeida Nogueira! Que de absurdos tenho ouvido a seu respeito!”. A filha observa que Aureliano se baseou em informações deturpadas. Propõe-se a fornecer dados para que o autor possa conhecer mais e julgar melhor. Quanto à cultura “periférica”, diz que não se basearia em seu conceito, mas no de Rio Branco. Este convidara Almeida Nogueira para representar o Brasil no IV Congresso Panamericano, ocasião em que dissera: “O Brasil será condignamente representado por Vossa Excelência. Quero que saiba que foi o meu escolhido porque sei que está à altura da missão que lhe confio”. Contesta que as aulas do pai fossem repetitivas durante todo o ano letivo: “eu o via, todos os dias, preparar carinhosamente as suas preleções e, com que dedicação! Como lhe deverão doer as injustas palavras de um seu discípulo (ele os estimava a todos!) dessa Academia que ele amou tanto que com ele se identificou para lhe escrever a história, onde deixou o melhor do seu espírito e uma grande parte do seu coração!”. Ironiza com o esquecimento em que caíra o pai, já que seus atributos seriam o da vulgaridade como cidadão e o da incompetência como mestre. Aureliano Leite fez publicar a missiva na íntegra. E se explica: “Não fiz a biografia do ilustre varão. Nos meus retratos, fujo sempre de detalhes que pouco dizem. Em pinceladas largas, traçadas de uma vez, ensaio fotografar aquelas figuras de merecimento às quais tributo admiração”. Ao penitenciar-se, a filha Domiciana escreve outra carta: “Foi muito gentil a maneira pela qual o dr. Aceitou as minhas informações. Pensamos, cá em casa, que a sua crônica tivesse sido feita de ânimo prevenido e ontem desfez-se-nos a impressão, confesso que penosa, que tivemos ao lê-la”. Aceitas as escusas, a filha agradece as palavras carinhosas. Melhor assim. De qualquer forma, é um perigo tentar descrever as pessoas. As lentes são distintas e cada um enxerga o que quer, pois tudo é suscetível de interpretação. Não estamos na República da hermenêutica? Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 20 10 2023 voltar |
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