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O VIÉS COGNITIVO NA JURISDIÇÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
A produção de textos jurídicos inunda o Brasil, a República mais provida de Faculdades de Direito: mais do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta.

O viés cognitivo na jurisdição

A produção de textos jurídicos inunda o Brasil, a República mais provida de Faculdades de Direito: só nosso país conseguiu a façanha de ter escolas produtoras de bacharéis em ciências jurídicas em número superior ao da soma de todas as outras existentes no restante do planeta. Essa inflação congestiona o mercado, mas estimula o circuito dos cursos, seminários e da publicação jurídica em geral, para centenas de milhares de estudiosos.

Compreensível, portanto, a volúpia que expele milhares de obras para todos os gostos. Mas é menos frequente a oferta de trabalhos que se distinguem dos manuais e que aprofundem questões mais abrangentes do que a dissecação da legislação, doutrina e jurisprudência, para fins meramente operacionais.

Justamente por isso, é gratificante ler o livro da registradora Lorruane Matuszewski, "Diálogos para uma (re)interpretação da Súmula 84 do STJ. Uma crítica ao viés cognitivo jurisdicional a partir da comparação de sistemas registrais imobiliários", sua tese de Doutorado. O prefácio do pensador registral Leonardo Brandelli, que integrou a banca de arguição da escritora, indica a importância do tema: "Não é mais possível, no estágio atual das ciências, ignorar as instituições econômicas, na medida em que já foi adequadamente demonstrado que no mercado os custos de transação não são igual a zero, sendo, portanto, altamente relevante a formatação institucional".

A partir do estudo comparativo entre os sistemas registrais brasileiro e americano, enfrenta Lorruane uma questão em aberto: a influência dos vieses cognitivos na esfera jurisdicional, no caminho da construção da percepção jurídica, política e econômica, na área do direito registral imobiliário. O legislador já se apercebera que o profissional juiz é um ser humano, fruto de uma educação jurídica situada no oitocentos. Sim, o modelo de formação do bacharel em direito ainda vigente no Brasil desde 1828, já possuía mil anos quando Pedro I o importou de Coimbra.

Isso levou o Parlamento a conferir nova redação ao artigo 20 da vetusta Lei de Introdução ao Código Civil, hoje Lei de introdução geral às normas do direito brasileiro. O julgador é obrigado a levar em conta as consequências práticas da decisão.

Essa opção pelo consequencialismo, tão criticado por uma ala mais conservadora e adepta de um inflexível formalismo, faria da Justiça brasileira um equipamento mais humano e sensível à realidade de profunda iniquidade social, desapercebida pela maior parte do universo jurídico. Mas será mesmo assim?

Para as finalidades da tese de Lorruana Matuszewski, a reflexão serviu para demonstrar que a Súmula 84 do STJ mereceria revisão. Ela preceitua: "É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel ainda que desprovido do registro".

Tem razão a autora quando observa: "O STJ acabou conferindo efeitos reais a uma promessa de compra e venda não registrada. Embora ciente de que o caso concreto não se tratava de promessa submetida a registro, verifica-se por todo o voto que a fundamentação tomou por base argumentos e doutrinas relativos a promessas de compra e venda com efeitos reais, ou seja, registradas".

Aparentemente, o raciocínio dos julgadores foi na tendência tutelar do considerado "a parte mais fraca". Só que a boa intenção esbarra na vulnerabilidade de todo o sistema. É o que Marçal Justen Filho chama de racionalização, um "processo que afeta a todos os seres humanos. Trata-se de um processo desenvolvido a posteriori de uma situação concreta, caracterizando-se pela formulação de justificativas para uma conduta ou um sentimento pré-existente. O processo de racionalização destina-se a legitimar a conduta perante terceiros, mas especialmente em face do próprio sujeito".

Tudo resulta da mentalidade pátria, já que "a sociedade brasileira, em sua maioria, é antiliberal e patrimonialista, vendo no Estado um verdadeiro pai que tudo deve prover a seus filhos". Além disso, "a tolerância pelo Judiciário e a normalização dos contratos de gaveta, a ideia de que aquele que não cumpre com o ônus de registrar o seu imóvel (e que não se preocupa com terceiros contratantes por meio da publicização imobiliária", parecem comprovar a situação.

A conclusão de Lorruane é de que a exigência de análise das consequências concretas da decisão judicial não exime o julgador de preservar a segurança do sistema registral. Por isso, deveriam ser expelidas decisões ditadas pelo caso concreto, que atendem a um único litigante e prejudicam o sistema registral pátrio, criando externalidades negativas potencialmente lesivas para o sistema econômico. Excelente tese, melhor ainda o livro.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 11 04 2023



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