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O LUTO DAS CASAS
Acadêmico: Gabriel Chalita
Toda a cidade chorou. Todas as janelas decidiram fechar as cortinas. Morreu a Socorro, Maria do Socorro, minha avó.

O luto das casas


Toda a cidade chorou. Todas as janelas decidiram fechar as cortinas. Morreu a Socorro, Maria do Socorro, minha avó.

Eu tinha pouco mais de quinze anos. Estava voltando da escola e vi a multidão e o silêncio. A mulher que tinha o ofício de curar destinos se despediu da vida. Foi isso o que o padre disse, enquanto rezava diante do caixão.

Eu, talvez, não soubesse tudo o que ela fazia. Meu avô foi um homem poderoso da cidade. Amealhou um dinheiro que dava para minha avó fazer o que bem entendesse. E ela entendeu ajudar. Não conheci meu avô. Falavam dele como um homem correto. Cresceu no trabalho e trabalhou até os instantes finais. Tiveram cinco filhos, dentre eles, o meu pai.

Meu pai morreu cedo, eu era criança demais para o sofrimento. Foi minha avó que, mãos dadas, andou comigo o caminho da bondade. Minha mãe conheceu outro homem, e eu tive mais dois irmãos. Não julgo minha mãe. Tão jovem. Tão pronta para a vida. Não gostei do seu marido, disse nada sobre isso e prossigo não dizendo. As escolhas das pessoas que amamos competem a elas. Chorei criança, quando os vi juntos. Ele grosseiro, ela carente. Ele vestido de arrogâncias, ela nu de saudades do que nem sabia.

Minha avó fez o casamento que minha mãe quis. Quis uma festa longa. Minha avó atendeu. Depois de não muito tempo, ele se foi, e ficaram minha mãe e meus irmãos na casa grande da minha avó.

Quem cuidava de mim, nesse tempo, era Katia Cristina. Minha avó a chamava pelo nome composto, e eu achava bonito. Eu via as duas na mesa grande da cozinha, minha avó, pacientemente, a ensinando a escrever.

Muitas foram as que trabalharam com minha avó e foram ajudadas para escolherem seus caminhos. Com minha avó, aprendi o conceito cristão do amor ao próximo. Ela não podia mudar o mundo, mudava, então, os mundos do seu entorno.
Quando os dias estavam por se despedir, ela nos fazia crianças, em qualquer idade, para ouvir histórias. Eram lindas a paisagem que víamos da varanda e a sua voz contando narrativas que nos ensinavam. Era ela a maior apoiadora das causas sociais da cidade. O asilo. O orfanato. O hospital. A casa que atendia os que não tinham casas.

No velório, estavam os padres, os pastores, o rabino, o líder do centro espírita, a mãe de santo. Minha avó era frequentadora de missas, quase que diariamente, era católica, devota de São Francisco e Santa Teresinha. Minha avó entendia religião como religião deve ser entendida, o que liga, o que religa, o que não desliga.

No centro espírita, havia uma grande creche doada pela minha avó. Na maior Igreja evangélica da cidade, os instrumentos musicais foram doados pela minha avó. Eu não sabia, ela não dizia o que fazia. Só sabia de andar de mãos dadas com ela visitando esses lugares todos. Falando com o prefeito sobre os que dormiam na rua. Dizendo à Katia Cristina que nunca negasse comida a alguém. Na porta da casa, sempre havia os que passavam e pediam. Havia uma mesa quase na entrada e ela convidava a se sentar. Achava indigno colocar a comida em uma vasilha e dar a quem nada tinha.

Quando meu pai morreu, a cidade também estava lá. Mas eu não me lembro tanto. Lembro dela. Da sua dor silenciosa. E do seu colo. Enquanto iam e vinham com os cumprimentos, eu, sentado no seu colo, alimentava sua vida de futuro. Minha mãe preferiu o quarto e chorou a viuvez precoce. Foi um acidente. Foi um dia triste.

No enterro, os jovens da Assembléia de Deus, o coral que ela patrocinava, cantaram. Eu olhava para o céu e sentia que ela via tudo. E uma paz foi demitindo a dor da despedida. Katia Cristina disse que ela havia deixado uma longa carta para mim. Que me entregaria, quando chegássemos em casa. Nos abraçamos abraçando a memória de uma vida que nos ensinou a vida.

O luto das casas era apenas por respeito, não por desespero. A vida é um nascer e é um explicar o que fica. Se nos perdemos, plantamos nada, e o solo nada oferece para a humanidade.

Voltando para casa, deitei sozinho em uma rede em que tantas vezes nos deitamos juntos. E chorei feliz. Chorei aguardando a carta que Katia Cristina se prontificou a buscar. Ela morreu no dia 4 de outubro, dia de São Francisco. A última missa que fomos juntos foi no dia 1, dia de Santa Teresinha. Ela chorou na parte final, quando uma chuva de rosas caía sobre a Igreja. Olhou para mim e sorriu, explicando que era esse o desejo da Santa Teresinha, que, depois da morte, pudesse lançar rosas para perfumar a terra. "Meu neto amado, a morte deve ser linda". Disse isso abraçando a foto do meu pai e do meu avô, que ela levava sempre nas missas festivas.

Balançando na rede, balançavam as memórias em mim. Maria do Socorro, minha avó, a que amava a vida e não temia a morte, é santa também.

Publicado no site do jornal O Dia
Em 08 10 2023



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