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Acadêmico: Gabriel Chalita Se o sonho sonhado dormindo não foi bom, foi bom para lembrar que posso adotar palavras e posturas que embelezam o mundo.
O orfanato das palavras Sonhei um sonho. Era uma cidade parecida com a cidade da minha infância. Encostada em duas grandes serras, a cidade vivia com seus rios, suas plantações, sua natureza, ainda preservada, sua gente. As ruas estreitas exigem alguma proximidade. Em cidades pequenas, é incomum o não-olhar, o não-cumprimentar, o não-dizer. Nas memórias que desenham vida em mim, há muito do que foi dito das palavras, das palavras nascidas depois dos silêncios. É o silêncio que dá profundidade às palavras. Como nos rios. Há mais do que as superfícies. Sempre gostei de sentar e ouvir as palavras de pessoas que já haviam vivido muito. Palavras ensinadoras. Palavras arrumadas pelo tempo para caírem mais leves e florescerem. Coleciono palavras daqueles dias. Algumas poucas gentes usam, já, na época, não usavam, só os velhos. Foram fortes antes. Ainda são fortes em mim. Fortes ao ponto de me fazerem lembrar as pessoas que as pronunciavam. Os mais velhos me ensinaram o não-fazer. Nem sempre é necessário fazer. O fazer pode ser marcha, pode ser bando, pode ser máquina. O ser humano é mais. O ser humano é natureza. É rio, também, e é serra. É até pedra. Pedra e os seus caminhos. Caminhar sem pressa é como dançar. É permitir que o ver nos faça fazer parte. Eu via o que voava e o que acarinhava nos ninhos preparando o voo. Eu via o que cuidava da cria e via o que corria assustado com os barulhos humanos. No meu sonho, entretanto, essa paz não havia. Havia um dizer repetido das mesmas palavras. Como se não houvesse outras. Como se faltassem. No meu sonho, havia uma placa que explicava "orfanato das palavras". Estavam lá sem conviver com as famílias, perdidas de dizeres. Sem dizeres, não há sentimentos. As palavras explicam os sentimentos. As palavras brotam os sentimentos. No meu sonho, o que um dizia, o outro imitava. O que um andava, o outro andava. O que um parava, o outro parava. Era um copiando do outro e era um não-sendo um com o outro. Não surgia nenhum "nós". E, quando não surge o "nós", o "eu" imerge. Esconde-se até de si mesmo. Os velhos que eu gostava de ouvir não eram assim. Havia uma escritora que escrevia tão honestamente que, quando eu via os seus dedos dizendo os sentimentos, na velha máquina de datilografia, eu a imaginava desaparecida para as coisas do dia e eternizada nas palavras que ali nasciam. Para que se preocupar com o que passa? Tudo passa. Para que se preocupar? O que deve nos ocupar é a poesia. A poesia das infâncias é o brincar. Sem obrigações com as vitórias, a não ser quando os adultos erram e exigem o desnecessário. A poesia do velho é o lembrar que o desimportante passa. A poesia dos amantes é desligar os barulhos dos medos e das cobranças e das sabotagens e amar. A poesia dos trabalhadores é trabalhar como trabalha a natureza, é acreditar na harmonia do fazer com o ser. O mais importante é o ser. O ser que pode, inclusive, não fazer. No sonho ruim, os sorrisos eram iguais. Não, não eram sorrisos, eram expressões fabricadas para agradar. Ah, tão diferente dos sorrisos da minha infância, da liberdade de não precisar dizer nada, da liberdade. Acordei cansado. Abri a janela e vi o sol dizendo. Ouvi passarinhos também dizendo. Ouvi minha memória concordando. Se eu entrasse nesse orfanato das palavras, adotaria muitas delas. A palavra amor e a palavra amar. A palavra irmandade. A palavra silêncio. A palavra paciência. A palavra aceitação. A palavra paz. A palavra sagrado. Como viver sem o sagrado?! Se o sonho sonhado dormindo não foi bom, foi bom para lembrar que posso adotar palavras e posturas que embelezam o mundo, que relembrem os mundos da minha infância, onde os velhos diziam sabedorias, mesmo quando não diziam. Também tive uma máquina de escrever. Também tive pressa e, também, desperdicei vidas aguardando. Guardo os erros e busco o certo. Que mora além e que mora dentro. Tomo água e relembro que as fontes são limpas. É só não sujar. voltar |
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