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O APAGADOR DE ALMAS - PARTE 2
Acadêmico: Gabriel Chalita
A falta de amor pela vida é que nos envelhece.

Depois do sepultamento, minha prima quis estar comigo. Tive ensaios de dizer da desnecessidade da visita. Há muito não nos falávamos. Não que eu colecionasse algum rancor, mas os nossos mundos se tornaram outros. Éramos estranhas, depois de tantas ausências. Acabei por dizer nada e ela veio.

Fiquei impressionada com o seu envelhecimento. Disfarçadamente, eu olhava no espelho que ficava na parede, centralizado junto à mesa de jantar. Será que eu, três anos mais velha, estava também velha? Não. Decidi. A falta de amor pela vida é que nos envelhece.

"Eu o amei, prima, muito mais do que você o amou". Tive vontade de prosseguir no silêncio. E, assim, fiz.

"Eu sei que ele nunca me esqueceu, essas mulheres todas eram distrações, eu fui a mulher que ele amou". Virei um gole do chá de cidreira que nos acompanhava com algumas guloseimas de chocolate que não me despertavam apetite.

"Tive ódio, também. Mais de uma vez, pedi a ele que devolvesse cada dia do meu sofrimento". Reagi, perguntando de alguma atitude dele. "Prima, ele desautorizou meu amor".

Aproveitei o que ela disse para tentar desdizer algumas de suas teimosias. Ele era um homem interessante, certamente. Fui seduzida e, depois, trocada. Quando saí daquela casa, minhas pernas aborrecidas não sabiam onde ir. Mas fui. Fui até o dia em que consegui suspender a tristeza.

Nos meses depois que fui trocada, silenciei os meus sonhos. Eu era razão e nada mais. Quando vinha a imagem dos dizeres dele, do toque dele, do suor dele em mim, eu desligava.

"Prima, você está distante". Respondi que estava saboreando o chá. Mas a incômoda visitante me trazia lembranças que não precisavam ser lembradas. Não gosto de colecionar dor. Ele morreu em mim antes de morrer e, assim, deixei de esperar por ele.
Minha prima ficou com ele por menos de dois anos. E mais quarenta anos de aguardar. Não me parece razoável, não me parece inteligente.

Eu estava tão acostumada à ausência que demorei para autorizar Miguel. Autorizei. Sou feliz. Assunto encerrado. E, então, por que receber minha prima e seus velórios? Por que ouvir as notícias de jornais tão antigos?

"Prima, eu ficava sentada em uma praça, perto da casa dele, a mesma casa em que vocês se amaram e que eu e ele nos amamos, ficava vendo a sua chegada com outra mulher, a luz do banheiro que dá para a rua acesa, o tempo que eles demoravam para fazer amor. Não, não era amor. Era fuga. Os homens que precisam conquistar e descartar as mulheres são fugitivos.

Foi quando pedi que ela parasse de decidir se foi ele, ou não, infeliz e perguntasse a ela mesma se valeu a pena desperdiçar a vida vivendo um amor sem amor. Ela me olhou com complacência e me sorriu sinceridades: "Eu não desperdicei a vida, prima, eu vivi, mesmo que em mim, a mais linda história de amor".

Eu não sou dada a decisões apressadas, nem no meu ofício de julgar, nem nos julgamentos que faço das histórias que se misturam à minha. Quem sou eu para dizer quem foi mais feliz? Minha prima, talvez, não tenha estacionado a vida como julguei. Talvez tenha sido mais interessante do que eu possa imaginar. Mas há algumas coisas sobre Henrique que talvez eu devesse falar, para apagar de vez aquele que a tantas apagou. Não, ele nunca me apagou, porque eu não permiti. Pelo menos, é isso o que eu digo a mim mesma, tentando acreditar.

"Como é bom esse chocolate, prima". Saboreando o que saboreava, ela me pareceu não ser dada a desperdícios.



Publicado no site do jornal O Dia, 17 de setembro de 2023.



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