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HERDEIROS DA VIDA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Como é bom ter a consciência de que compreendi o meu lugar no mundo.

Herdeiros da vida


João, Helena, Luciana, Francisco, Regina. Vieram eles em comitiva falar comigo. Vieram representando os outros. Vieram e disseram: "Professora, queremos uma reivindicação". Achei bonita a pompa. "O que houve, que reivindicação vocês têm?".

Francisco, o mais falante, explicou o abaixo-assinado. "Queremos que a senhora seja novamente nossa professora no ano que vem. Com quem temos que brigar?". "Brigar não, Francisco", disse Helena, "Conversar".

Eu estou na proximidade dos 60 anos, dediquei minha vida às infâncias e prossigo autorizando a emoção. São eles alunos de 7 anos, segundo ano do ensino fundamental. Nos conhecemos há tão pouco e já somos tão responsáveis uns pelos outros. Eu os enxergo como herdeiros da vida, herdeiros da vida que eu ajudo a construir, quando saio de casa e entro nas casas deles com a irrenunciável decisão de semear amor.

Sou auscultadora de histórias de dor, e são muitas. Sou exigente nas explicações do certo e do errado. Sou crente, desde sempre, que todos eles, se forem bem cuidados, construirão lindas e verdadeiras histórias. Não me filio ao grupo dos que deserdam crianças. E são tantos. Os violentos. Os ausentes. Os egoístas que não compreendem que há espaço para todos no sol que, todos os dias, nos acorda.

Já pensei em parar algumas vezes. Recebi uma boa herança de uma tia que foi minha segunda mãe, poderia viver de viagens em viagens, sou curiosa, o mundo me fascina. Mas não me imagino sem eles. Sem os olhares ávidos, sem o barulhar de pensamentos nascendo, de criatividades explicando que, se não forem tolhidos, florescerão escrevendo tempos melhores.

Gosto de contar histórias, de explicar conteúdos, de pensar nos gestos que educam. Gosto de autorizar as imaginações. Gosto do aprender com eles. São tantos anos, meu Deus! Comecei tão menina! Estou no magistério há pouco mais de 40 anos. Sim, já posso me aposentar.

"E por que vocês querem que seja novamente a professora de vocês?". "Por amor, ué", estranhou Helena. "Por amor?", insisti. "Sim", disse ela decidida, "A senhora tem amor pelo que faz, professora". "E amor pela gente, também", completou João.

Eu sorri, eu chorei. "Está emocionada, né?", brincou o brincalhão Francisco. "É por amor que sou professora, por amor a vocês, por amor à educação, por amor à humanidade, vocês estão certos". Então, Luciana participou, "E fique sabendo que nós amamos a senhora, professora".

Um filme foi brincando com as minhas emoções. Quantos se foram. Quantos me provaram que eu estava certa, que crianças bem cuidadas não degringolam em vidas desperdiçadas. A violência é resultado das ausências.

Desde sempre, acreditei na inteligência de todos eles. É apenas uma questão de estímulos, de portas que precisam ser abertas, por eles mesmos, desde que saibam, desde que acreditem que a estrada segura é aquela que não escraviza, é aquela que não diminui.

Olho para os meus cinco alunos e digo que vou ver o que posso fazer, digo que fico feliz e digo, também, que, se não for possível, haverá um outro professor que terá o privilégio de ter uma turma tão incrível. Helena retruca, "Não queremos, por favor, faça um esforço, não desistiremos da senhora!".

A frase "não desistiremos" calou em mim. Nunca desisti de um aluno. Olhei além do que ofereciam, quando ofereciam o erro. Olhei nas histórias sofridas. E confesso, sem autoelogio, que, muitas vezes, demiti influências erradas e contratei com eles um pacto de felicidade. "Está bem, vou fazer o possível". "E o impossível", exigiu Francisco.

Quando cheguei em casa e vi os meus anos no espelho, agradeci. Como é bom ter a consciência de que compreendi o meu lugar no mundo. Nas salas de aula. Nos sentires mais bonitos dos meus alunos. Olho ainda no espelho e sorrio, que bom viver mais um dia bom. No porta-retratos, minha mãe, professora também. E seu sorriso de bondade, a herança mais bonita que recebi.

Publicado no site do jornal O Dia
Em 27 08 2023



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