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O QUE FOI QUE FIZEMOS?
Acadêmico: José Renato Nalini
A "civilização" sepultou os córregos, os riachos, qualquer curso d'agua e todas as nascentes.

O que foi que fizemos?

São Paulo de Piratininga era o celeiro das tribos Guaianás. Affonso A. de Freitas, historiador e estudioso de etnias indígenas, em seu "Vocabulário Nheengatu", contempla o verbete Guaianá. Para ele, é corruptela de guananá, espécie de marrecão, abundante nas margens do Tietê, anteriormente à chegada dos brancos.

Os indígenas que habitavam a bacia do Tietê passaram a ser assim chamados, pois fixaram suas tabas nas margens do rio, respeitando as linhas das inundações periódicas. Eram sábios, portanto. Mais do que nós. Porque, com a descida das águas, os campos cobriam-se de perdizes e de tal quantidade de veados, que o rio fecundante se chamou Anhambi. O primeiro significado de Anhambi é rio do veado: anhanga, veado e y, água, rio. Hoje nós falamos Anhembi e quem pode explicar melhor o que aconteceu é o meu querido colega, o sociólogo José de Souza Martins, outro apaixonado pelo Nheengatu. Para o autor do "Vocabulário", "modernamente já se não escreve e nem se pronuncia Anhambi, porém Anhembi: de todas as corruptelas sofridas pela forma primitiva do vocábulo Anhanga-i - Anhambi, Anhebi, Anhebig, Anembi, Angenim e outras, aquela foi que prevaleceu fixando-se no vernáculo".

No relato de Affonso de Freitas, "as lagoas povoavam-se de pernaltas, desde a garça elegante até o grave e feio jaburu, de marrecas e de patos selvagens em parceria com as pacas, capivaras, ariranhas e antas na destruição dos peixes que a generosidade do rio amigo e lendário deixava repletos os alagados".

A região era, realmente, paradisíaca. "Os veados eram sem conta nas pastarias gordas, mas em sua perseguição apareciam os grandes felinos das matas da Cantareira, a compartir com o homem no banquete régio que era a devastação do providencial celeiro vivo, e muitas vezes bandos de onças, acossados pelos indígenas e com a retirada cortada pelo lado do rio, caíam, espavoridos, sobre a nascente povoação de São Paulo do Campo, com angustiosa surpresa e incontido terror dos moradores".

Por se constituir no único receptor de todas as águas de um território amplíssimo, que outrora pertenceu ao povo guaianá, o Tietê possuía proporções de grande e profundo caudal. Para os verdadeiros donos da terra, os indígenas, o Tietê era o mais volumoso e o de maior profundidade, o rio verdadeiro, legítimo, o rio grande, o rio por excelência. Tudo isso cabe na linguagem peculiar ao Nheengatu. Todas essas características estão compreendidas no vocábulo Tietê.

Ora, o que fizemos com esse rio? Por acaso existirá algum peixe que resista à imundície que nele despejamos? Onde a luxuriante vegetação campesina, os capões de mato, a área irrigada em todas as direções por uma infinidade de regatos nascidos de inúmeras lagoas esparsas?

A "civilização" sepultou os córregos, os riachos, qualquer curso d'agua e todas as nascentes. Lançamos ao Tietê sujeira tanta, que ele percorre, fétido e opaco, quilômetros e quilômetros. A espuma cobre Pirapora e Salto e afugenta um turismo religioso secular.

O cenário em que se celebrou a "missa padroeira", tão bem narrada por Affonso de Freitas Júnior, Promotor de Justiça e, como o nome identifica, filho do historiador, já não existe. Sua descrição deveria nos envergonhar: "Estamos em São Paulo de Piratininga. Ei-los, os famosos campos pirapitininganos! Ei-los, em toda a sua pujança bravia e primitiva! Ei-los em toda a sua beleza ridente e agreste! Ei-los, como no-los descreveram os primeiros cruzados de Cristo em nossa terra! Para dizer da sua espantosa fertilidade, da uberdade de suas messes, da abundância de suas águas, de suas caças, de suas pescarias, de suas frutas, dos maravilhosos panoramas desenrolados até às gibas do Jaraguá, reclinado na derradeira divisa do horizonte, qual fabuloso bicípite em vigia; para dizer da pureza imaculada desse céu de safira, donde guaraci derrama o ouro líquido de sua luz; para dizer dessa perpétua primavera que verdeja as matas, desabotoa as flores e faz cantar os pássaros e as almas das gentes; para dizer do clarão opalescente esparzido pela pálida jaci sobre a crista dos montes, no espelho das águas tranquilas e na coma do arvoredo silente; para dizer dessa celeste rocha a cuja claridade, no falar do roupeta, "podem ler-se os segredos das mais miúdas cartas"; para sintetizar o que era essa região paradisíaca, é bastante repetir-se as palavras do bom Simão de Vasconcelos quando a apelidou: Campos Elíseos".

Cabe indagar, embora não haja resposta: o que fizemos com o Tietê?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 06 07 2023



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