Compartilhe
Tamanho da fonte


O CONTRADITÓRIO JOÃO TEODORO
Acadêmico: José Renato Nalini
Figuras pitorescas na vida pública, o Brasil sempre as teve. Uma delas foi João Teodoro Xavier de Matos

O contraditório João Teodoro

Figuras pitorescas na vida pública, o Brasil sempre as teve. Uma delas foi João Teodoro Xavier de Matos, paulista de Mogi-Mirim, nascido a 1º de maio de 1828. Ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em 1849 e colou grau em 31 de outubro de 1853. Três anos depois, foi aprovado na defesa de teses e recebeu o grau de doutor.

Era considerado alguém provido de grande inteligência. Esta permitiu que ele fosse Promotor Público na capital, Procurador Fiscal do Tesouro do Império, Deputado provincial e até Presidente da Província de São Paulo, entre 1872 e 1875. À época do Império, os governadores das Províncias se chamavam Presidentes. Só com a República surgiu a denominação "Governador".

Já em 1870 foi entronizado na Congregação das Arcadas, tornando-se lente catedrático. Ao lado disso, era uma personalidade curiosa e contraditória. Apesar de ser administrador reconhecido, enérgico e progressista, que propiciou a São Paulo incontáveis melhoramentos, havia um lado seu afeiçoado à esquisitice, à excentricidade e até mesmo à extravagância.

Isso não impediu fosse um caráter sem jaça. Ética, honradez e bondade faziam parte de seu patrimônio moral. Só que as esquisitices, exploradas pela indefectível maledicência, uma das características mais marcantes da espécie humana, o fizeram ser considerado um exemplar da categoria maluquice.

Lúcio Mendonça, no livro "Horas do Bom Tempo", salientou que ele era excêntrico desde o físico: "Usava umas calças de ganga amarela, únicas, em constante disparate com a sobrecasaca e cartola solenes; trazia a barba de um corte especial, curta e em faixa, como um lenço preto amarrado aos queixos, no rosto enorme e comprido, onde avultava a testa inteligente".

Durante sua presidência, o "semelhante originalão" vivia à sua maneira em Palácio, cercado de figuras esquipáticas e procedendo de maneira insólita. Não respeitava conveniências, nem atendia a protocolos ou quaisquer preceitos sociais.

Parecia fatigado da banalidade humana, pois cercado de áulicos que, como as moscas, continuam a assediar o poder. Achava a conversa dos que frequentavam o Palácio muito corriqueira e trivial. Talvez para mostrar-lhes o pouco interesse pelas fofocas invariavelmente presentes nas rodas palacianas, fazia questão de se rodear de uma coleção de estropiados. Eram seus comensais um surdo, um mudo, um gago e um idiota, na linguagem de Almeida Nogueira, em suas deliciosas "Tradições e Reminiscências" da Academia de São Paulo. Textualmente: "Amigo fiel e constante de tudo quanto fosse paradoxo e controvérsia, o mais fino regalo de sua vida era provocar discussão polêmica religiosa, política ou filosófica entre os personagens daquela cour des miracles".

Muitas anedotas e lendas cercam sua passagem pela vida pública bandeirante. Quando presidia a Província de São Paulo, recebeu a visita do Conde D'Eu, marido da Princesa Isabel, a Redentora e presumida herdeira do trono imperial. Hospedou-se em palácio, mereceu os protocolos habituais. Só que no jantar de gala, presente o Conde e outras figuras ilustres da política, encontraram à cabeceira da mesa, "gravemente sentado como todos os dias, um tipo popular do museu humano do presidente, o Goulartinho".

Os convidados estranharam e se espantaram. Martim Francisco e Leôncio de Carvalho protestaram. Mas o Presidente João Teodoro não se amofinou. Explicou: "Não estranhe Vossa Alteza. Eu lhe explico. Tenho uma antiga convenção ali com o cidadão Goulartinho; ele janta todos os dias comigo, no lugar de honra, com a condição de me fazer um discurso à sobremesa. Ora, o cidadão tem cumprido pela sua parte, até hoje, pontualmente, o contrato; não serei eu que o infrinja, compreende Vossa Alteza?".

"Sem dúvida, mas sem dúvida!", aquiesceu de bom humor o Conde. O Goulartinho, personagem folclórico, imperturbável, sorveu o bom vinho, presidiu o banquete e, à sobremesa, fez o discurso de obrigação.

De outra feita, passando por São Paulo um charlatão internacional de nome Van Hall, trazia como preciosidade única um álbum de retratos e autógrafos de chefes de Estado e celebridades. Quis obter a mensagem do Presidente e deixou com ele o álbum, dias depois restituído. Os jornais da época estamparam a queixa contra o presidente, pois várias das fotografias do álbum foram adulteradas. O retrato do ditador Solano Lopes ostentava óculos desenhado e o do Papa Pio IX enfeitado com um cachimbo.

João Teodoro Xavier publicou várias obras, dentre as quais uma clássica "Teoria Transcendental do Direito". Morreu na capital, em 31 de outubro de 1878, na mais extrema pobreza, atestado inquestionável de sua honestidade.

Publicado no blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 03 08 2023



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.