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QUEM SE LEMBRARÁ DE NÓS?
Acadêmico: José Renato Nalini
O que será que nossos sucessores na História guardarão desta época?

Quem se lembrará de nós?

A tecnologia colocou ao nosso alcance conversar com quem se queira, a qualquer hora e em qualquer recanto do planeta. Em breve, as comunicações incluirão os privilegiados turistas do espaço, em busca de novos ambientes, diante da exaustão da Terra. Mas a regra é de contatos imediatos e superficiais. Não há tempo a gastar com reflexões, troca de ideias, desabafos. Tudo tem de se compatibilizar com a era da velocidade da luz.

Invejo os antigos que escreviam cartas, deixavam registradas as suas memórias, tinham condições de colecionar reminiscências que, hoje lidas, evidenciam o quanto mudou o convívio entre as pessoas.

Os e-mails, os whatsApps, os tique-toques têm breve duração. Será que existirá, dentro de um século, memória deste nosso tempo?

Em sua "História Social", Michelet observava: "Quantas coisas, meio apagadas, dos nossos costumes populares, pareciam inexplicáveis, desprovidas de razão e de sentido, e que, surgindo para mim no seu acordo, na sua inspiração primitiva, não são outra coisa senão a sabedoria dum mundo esquecido...Pobres restos sem forma que eu topei sem os reconhecer, mas que, por não sei que pressentimento, não quis deixar arrastar sobre o caminho; ao acaso, juntei-os, recolhi-os e levei-os embrulhados na minha capa... Depois, olhando-os bem, descobri com uma emoção religiosa, que o que eu trouxera não eram nem pedras nem pedregulhos, mas sim os ossos de meus pais".

Na verdade, somos o reflexo de nossos pais. Eles, com certeza, reflexo de nossos avós. Nossos filhos e netos serão nossos reflexos? Esta era de tamanha balbúrdia, com a inflação de dados e com a copiosa pluralidade de opiniões, em sua maioria divergentes, o que estamos legando à nossa descendência?

O crescimento da população corresponde com a intensificação da iníqua desigualdade social. Aprofunda-se o fosso entre os incluídos e os excluídos. Com isso, impossível tentar delinear características gerais de uma inexistente homogeneidade social.

Ao escrever sobre tradições e reminiscências paulistanas, o grande historiador e pensador Afonso de Freitas assinalava que "a grande massa popular é o âmago, o cerne da nacionalidade. Eminentemente conservadora é ela quem, através de todas as gerações guarda, conserva vivas, patentes, as tradições, o modo peculiar de ser, a particular feição de nacionalidade distinta que todo povo homogeneamente constituído deve ter, qualidades essas apenas mantidas, por um fenômeno facilmente explicável, em estado latente no seio das classes avantajadas que, em mais amiudado contato, vivem com as civilizações estranhas".

Hoje não se afirmaria algo assim. O que é São Paulo em 2023? Quem diria que a provinciana povoação iniciada pelos jesuítas em 1554 fosse alcançar tamanha pujança e grandiosidade? Tudo aqui é grande. Inclusive os problemas. E, infelizmente, é mais essa face que se enxerga, do que as maravilhas que São Paulo costuma esconder.

Na visão crítica de quem reside em São Paulo o que mais incomoda é o trânsito, que voltou à condição anterior à pandemia. Um dos bons frutos da desgraça foi a redução do número de automóveis a circular pela cidade. Não é só a imensidão quantitativa, mas o abastardamento dos hábitos que acompanha o motorista. Sente-se onipotente à direção. Desconta sua irritação no pedestre, no ciclista, no motociclista e no deliberado desrespeito à sinalização semafórica.

Outro fato que suscita críticas é a violência, mais a sensação do que a realidade. O número de roubos e furtos de celulares. Em seguida, o abandono da zona central, tão provida de exemplares arquitetônicos dignos das grandes metrópoles mundiais, mas entregue à solidão e à delinquência, mal o sol se põe.

O espetáculo da cracolândia, aparentemente insolúvel. O crescente fenômeno da ocupação dos logradouros por moradores de rua. A disseminação da droga. A pichação, a sujeira, a deterioração de espaços que já foram dignos da grandeza bandeirante.

O que será que nossos sucessores na História guardarão desta época? Não nos cobrarão por sermos tão coniventes com a degradação? Não serão julgadores severos de nossa inadimplência incompetente como paulistanos? Não se pode prever o que será. Mais importante do que indagar "quem se lembrará de nós?", é questionar: "como se lembrarão de nós os que vierem?".

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 23 07 2023



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