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A HISTÓRIA SE REPETE
Acadêmico: José Renato Nalini
Ninguém diria que o vexame da revolta da vacina em 1904, subsistisse aos avanços da ciência e se manifestasse no Brasil quase cento e vinte anos depois.

A história se repete

Ninguém diria que o vexame da revolta da vacina em 1904, subsistisse aos avanços da ciência e se manifestasse no Brasil quase cento e vinte anos depois. Mas foi o que aconteceu, com sinais invertidos. Pois no governo Rodrigues Alves, o Presidente confiou no seu Ministro da Saúde, que era não menos do que Oswaldo Cruz. Um presidente progressista e amigo da ciência convenceu-se de que era preciso tornar obrigatória a vacina contra a varíola.

Enfrentou, por isso, renhida batalha na qual esteve praticamente sozinho, apenas amparado pela sua lucidez, consciência cívica e pelo acerto na escolha do responsável pela saúde pública.

Naquele início de século, a varíola permanecia como doença contra a qual não havia remédio, em boa parte do Brasil. No Rio de Janeiro, intensificava-se no inverno. O germe circula pela poeira atmosférica e as pessoas se contaminam pelas vias respiratórias.

A vacina fora descoberta na Inglaterra no final do século XVIII. Mas a ignorância grassava no país e, mesmo depois de garantida a segurança científica da vacina, a mentalidade tosca a repelia.

Impressionante como a tese contra a vacina, assim como acontece hoje, foi alvo de adesão de pessoas presumivelmente cultas. O deputado Barbosa Lima e os Senadores Lauro Sodré e Barata Ribeiro, algumas altas patentes do Exército e, principalmente, Edmundo Bittencourt, do jornal "Correio da Manhã". Basta ler Lima Barreto, em "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", para ter noção do desvario.

Em nossos dias, a vacina ganhou um adversário a mais: as redes sociais, manipuladas ideologicamente pelos retrógrados, com finalidades políticas. À falta delas, a guerra contra a vacinação travou-se no âmbito das rodas de conversa e propagação boca-a-boca.

O Brasil de então não era civilizado. Pode-se dizer que o de hoje o é?

Em 1904, cresceu o número de variolosos. Até junho, já haviam sido hospitalizados mais de mil e oitocentos doentes. O número destes era infinitamente maior, pois também havia resistência contra a internação.

A experiência internacional recomendava a obrigatoriedade da vacinação. Dera certo na Alemanha, na Itália e a França, ao hesitar, respondera por inúmeras mortes desnecessárias.

Rodrigues Alves arrostou o perigo. Em 29 de junho de 1904, o senador alagoano Manuel José Duarte apresentou o projeto nº 8, instituindo a vacina obrigatória. Barata Ribeiro insurgiu-se. Lauro Sodré o acompanhou. No dia 20 de julho, o projeto foi aprovado contra os votos de onze senadores, hostis a Rodrigues Alves: Pinheiro Machado, Joaquim Murtinho, Lauro Sodré e Barata Ribeiro entre eles.

A partir de 18 de agosto, votação na Câmara. Barbosa Lima, a maior expressão de então, opositor ao governo, criou todos os obstáculos possíveis. Foram propostas mais de cem emendas. Quem conseguiu removê-las foi um jovem parlamentar mineiro chamado Venceslau Brás. A lei foi aprovada. Quando da regulamentação, inflamou-se o movimento que era revolucionário e se engendrara muito antes. A vacinação foi um pretexto para servir aos desígnios eleitoreiros dos inimigos do presidente.

A massa ignorante, explorada pelos demagogos, deixou de atender ao convite para vacinação voluntária. O decreto regulamentador da lei da vacinação obrigatória foi considerado um ato ditatorial. Foi uma verdadeira revolução, com duas vertentes: a popular, na qual o governo se viu impotente e a militar, de uma noite só, em que o governo venceu.

Entre 11 e 14 de novembro de 1904, a malta desenfreada tomou conta da cidade. Capangas mercenários e desocupados tomaram conta da cidade em pânico. Bondes foram queimados, destruídos os candeeiros de iluminação, invasão de casas comerciais e tentativas de tomar quartéis e casas de arma. O comércio fechou. O Rio parou. Houve mais de vinte mortes.

Rodrigues Alves narrou, em registro de próprio punho, o que aconteceu então. Quando soube que militares estavam tramando um golpe e instauração de uma ditadura, escreveu: "Tive nessa noite a impressão de que o governo estava sem defesa e lia em todos os semblantes que era inevitável a queda. O ministro da guerra estava absolutamente sem ação e com evidentíssimo desânimo".

As forças leais ao governo legítimo sufocaram a rebelião. Como sempre acontece, os que haviam torcido pela derrocada, louvaram a serenidade do presidente. Exatamente como aconteceu ontem, hoje e sempre, pelos séculos dos séculos. O poder atrai as moscas que gravitam em torno dele. A qualquer preço, desde que usufruam de alguma vantagem.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 22 07 2023



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