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Acadêmico: Gabriel Chalita O presente é um bom limpador de passados para que o futuro venha sem medo nem preguiça.
O despertar romântico Acordo cedo desde há muito. Gosto de olhar o amanhecer e saber que há mais uma etapa da estrada do viver a ser cumprida. Sou forte o suficiente para não desperdiçar um dia, nem com as lamúrias dos que não têm o que querem, nem com o sono prolongado dos que já não acreditam nos próprios passos. Sou casado e cumpro o rigor do cuidar. Cuidar é o verbo acessório que explica o verbo principal, amar. É acessório, porque vai vestindo uma relação de delicadezas sem requerimentos nem exigências. O amar é o substrato da existência. É o alimentar da alma. É de difícil explicação para o pensamento. A paixão é um sentir mais fácil, é um doer mais perceptível, é uma parte que grita, quando a outra se vai. É um apagar de outras letras que não aquelas que compõem o nome da pessoa amada. Amada com o significado de amor-paixão. Dizem que não dura muito. Sou um homem das leis não das explicações das imaterialidades humanas. Então, não sei. Sei que há, nas relações, algo que ultrapassa o tempo fugidio das loucuras da paixão. É um atravessar as pontes, os buracos, os pedregulhos e até os chafarizes que compõem a estrada, que compõem a partitura de uma vida ou de duas vidas. E, aí, vem uma música boa de ouvir e de cantar juntos. Santina é a mulher que caminha comigo. O peso dos dias nos traz algumas intercorrências. Nem sempre estamos bem. Nem sempre o corpo amanhece com o vigor que gostaríamos. Fomos viajar. Ela e eu. E uns amigos que dividiram comigo algum trabalho. Encontrei alguns deles na saída do simpático cômodo em que cada um servia o seu café da manhã. Eu estava com uma bandeja preparada com o que vi de melhor para levar à minha mulher. Sempre achei romântico café da manhã na cama. Com cheiro de cuidado, com ingredientes de delicadeza, com a levada intenção de surpreender. Os amigos quiseram saber. Eu disse. Minha mulher acordou com alguma indisposição nas costas. Eles silenciaram. Depois valorizaram o cuidado. Disse nada. Pensei no quanto ela me cuidou. Nos dias em que foi o meu corpo avisando do cansaço ou de alguma dor. Nos dias em que minha mente se perdia do caminho. O amor-paixão é mais exigente que o amor-amor. No amor-amor, também mora a paixão. Mais calma, entretanto. Mais confiante nas continuidades. Menos apressada. Menos medrosa de interrupções. No amor-amor a intimidade vai escrevendo familiaridades, e as familiaridades vão se lendo nos textos ditos e vividos um do outro. Preparar o café da manhã para mulher que eu amo, há tantos anos, é só o cabeçalho da página de um dia em uma enciclopédica história que construímos juntos. Aos meus amigos, sugiro, façam o mesmo. É um desperdício não perfumar de delicadezas uma relação de amor. É tão difícil encontrar alguém que aceite e seja aceito como caminhante principal na estrada em que cruzamos com tantos, que o melhor é valorizar. Valorizar significa compreender o valor. O material é fácil medir. Quanto custa o pão ou a manteiga ou as frutas ou o leite ou o café ou a jarra de flores que está sobre a bandeja. O que não se pode medir, porque a métrica do amor ultrapassa os pesos e medidas criados por criação humana, se pode sentir. O sorriso de minha mulher vale mais do que o esforço, tão pouco, de preencher uma bandeja com o melhor que pude. O melhor que posso é acordar ao lado dela e dizer ao amanhecer: "Que bom, que bom que permanecemos juntos, que bom que permaneceremos juntos". O presente é um bom limpador de passados para que o futuro venha sem medo nem preguiça. Um despertar romântico é o pequeno segredo para que o dia nasça mais bonito. E para que as horas que se sucedam, depois do início, sejam mais leves e mais perfumadas da presença que escolhemos nos presentear para viver a vida. Publicado no site do jornal O Dia Em 16 07 2023 voltar |
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