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Acadêmico: José Renato Nalini Deliciosa a leitura de "Histórias íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil", livro de Mary del Priore.
Histórias íntimas Deliciosa a leitura de "Histórias íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil", livro de Mary Del Priore. A mera enunciação dos temas abordados em cada capítulo é sedutora: da Colônia ao Império, um século hipócrita, primeiras rachaduras no muro da repressão, olhares indiscretos e as transformações da intimidade. Mary exerce a magia das palavras com tal perícia, que a consequência é a automática e imediata conquista da cumplicidade do leitor, ainda que ele pudesse considerar ousada a incursão por um tema de evidente ambiguidade. O sexo é algo presente e potente em qualquer existência. Nossa formação de austeridade no discurso e flexibilidade na prática, talvez iniba discussões livres sobre aquilo que, não resolvido, provoca angústia e gera infelicidade. A religião conferiu um dimensionamento exagerado à questão sexual. Como se nela se contivesse o suprassumo do pecado. Coisa que sempre causava perplexidade naqueles que não conseguiam detectar o mal em experiências tão prazerosas quanto proibidas. Se o design inteligente nos faz acreditar sermos seres criados à imagem e semelhança de Deus, então a sexualidade é divina. Quando é que a criatura mais se aproxima do Criador? Exatamente quando participa do misterioso, mas inefável dom de dar à vida a outro ser. E é o sexo o propiciador dessa dádiva. Mary começa nos primeiros tempos de Brasil. Quando os portugueses aqui chegaram, tinham firmes razões para acreditar na redescoberta do Éden. Natureza luxuriante e um povo tão belo e tão nu! Tão inocentemente despido, a evidenciar que intenções pecaminosas residiam era na falácia de uma pudicícia artificialmente elaborada e não na ingenuidade dos nativos. Associar nudez à luxúria foi uma construção humana que, seguramente, afrontou a intenção da Providência. Quanta injustiça foi praticada em nome da virtude! Castidade por opção é legítima. Castidade por obrigação é antinatural e chega a ser patológica. Com elegância e delicadeza, Mary Del Priore passeia pelo recorrente capítulo das vedações em matéria de relacionamento sexual. "O sexo admitido era restrito exclusivamente à procriação. Donde a determinação de posições "certas" durante as relações sexuais". Uma patrulha censória que passou a fazer parte dos cânones da convivência. Reprimir tão intenso impulso é impossível. Tanto que sempre houve, disfarçada ou não, a contumaz inobservância da codificação, para satisfazer às exigências dos viventes. O amor, capaz de "mover o sol e as demais estrelas", é componente inafastável da condição das espécies. Capaz de provocar desatinos, tanto que o Código de Hamurabi proibia o apaixonado de testemunhar em juízo, porque não estava no domínio de sua razão. Ainda hoje é possível testemunhar que a paixão interfere em tudo. Até nos destinos de uma Nação. E isso resulta de uma constatação inequívoca: sexo é aquela energia onipresente e onipotente, a servir de motivação eficaz, tanto para o sublime, quanto para o pérfido. A sabedoria antiga da Justiça brasileira proclamava que apenas três barras eram capazes de acionar o equipamento estatal encarregado de solucionar conflitos: a barra de ouro, a barra do córrego e a barra da saia...Dinheiro e bens materiais, a posse da terra e a mulher amada justificam a existência dessa tentacular ferramenta, que atravanca o Judiciário com milhões de demandas. Não só nos crimes passionais, tão bem analisados por Mary, detecta-se no sexo o móvel do desatino. Ele está nos assuntos de família, nas dissoluções societárias, nas infinitas fórmulas de se vingar de um repúdio do amante. Nada escapou à lente cuidadosa da notável intelectual, cuja obra a credencia como um dos mais celebrados cérebros desta nação, e que foi corajosa ao enfrentar assunto ainda submerso em preconceitos e contradições. Não teve receio ao desvendar a verdade brasileira: "Na intimidade podemos levantar todos os véus e nos perguntar quem somos. E quem somos? Indivíduos de muitas caras. Virtuosos e pecadores, oscilando entre a transigência e a transgressão". Quem é que, em sã consciência, poderia negar essa condição ambígua, causa de satisfação indizível, mas também de angústia e sofrimento? A leitura das "histórias íntimas" de Mary Del Priore não é somente um saboroso entretenimento, o que já teria justificado a primorosa elaboração. É muito mais: significa servir qual confortadora alavanca para quem cresceu sob austera blindagem puritana e sempre estranhou a contundência com que combateu essa coisa tão gostosa, a qual se procura com sofreguidão, apesar da prometida ira de um Criador justiceiro. Ao qual, paradoxalmente, os zeladores da sexual alheia chamam "o Deus do amor". Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão Em 08 07 2023 voltar |
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