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Acadêmico: José de Souza Martins Nesses anos todos de crescimento do autoritarismo no país, o preconceito cromático, como o do sujeito subversivo de verde e amarelo, da convocação de seus iguais para a mazorca antecipatória do golpe de Estado e de consumação da ditadura, foi instrumento de satanização dos detalhes da identidade brasileira.
Numa das convocações, pela rede, para a intentona de 8 de janeiro, em Brasília, que ele definia como convocação para a guerra, um jovem gritava “nossa bandeira jamais será vermelha” e que era preciso salvar o Brasil do comunismo. É evidente que ele não lê jornais e muito menos livros. É um desinformado verde e amarelo. Não tem o menor conhecimento do que é a alma profunda deste povo. A bandeira vermelha, entre nós, é coisa antiga, religiosa e sagrada. É a bandeira da festa do Divino Espírito Santo e do imperador do Divino, a do rei que voltará de novo, ressuscitado: ele será bendito e nascerá do povo, na bela composição de Ivan Lins “Bandeira do Divino”, baseada em pesquisa no norte de Minas [https://www.youtube.com/watch?v=wP0WG0inWgY]. No folclore brasileiro e nas tradições do nosso catolicismo popular, a bandeira vermelha do Divino é a bandeira do acolhimento e da caridade, dos que dão água a quem tem sede e pão a quem tem fome. Nesses anos todos de crescimento do autoritarismo no país, o preconceito cromático, como o do sujeito subversivo de verde e amarelo, da convocação de seus iguais para a mazorca antecipatória do golpe de Estado e de consumação da ditadura, foi instrumento de satanização dos detalhes da identidade brasileira. Os de nossas estruturas sociais profundas. Essa mentalidade tem raízes já na república nascida de golpe de Estado, golpe militar, contra o republicanismo. Portanto república imaginária sem heróis porque sem povo. Os golpistas tiveram que inventar um inimigo fantasioso para legitimar a falsa república: a monarquia deposta por um engano de Deodoro. Para combatê-lo forjou guerras, como a Guerra de Canudos, na Bahia, em 1896-1897, e a Guerra do Contestado, em Santa Catarina, em 1912-1916. Ambas, guerras sangrentas do Exército contra supostos monarquistas dos sertões brasileiros, gente simples e pobre, desamparada do Brasil, filha das escravidões que tivéramos e dos abandonos e desprezos que ainda temos. O republicanismo brasileiro nasceu como fábrica de adversários de ocasião para legitimar os que não tinham nenhuma fonte de legitimidade. A história das intervenções militares na história política do Brasil é uma história de equívocos e desconhecimentos. Em Canudos as coisas se precipitaram por acusação política, injusta e mentirosa, de um latifundiário da região, o Barão de Jeremoabo, contra um grupo de místicos ali reunidos. Identificavam-se com um movimento social e religioso fundado pelo Padre José Antonio de Maria Ibiapina, cearense de Sobral, que se dedicara à evangelização do sertão. Nas práticas religiosas do povoado sertanejo há evidências de joaquimismo na expectativa do fim dos tempos, com a proximidade do fim do milênio, e o advento de uma nova era de liberdade, fartura e alegria. A era do Espírito Santo. Os reiteradamente injustiçados e enganados na incerteza da liberdade concedida aos pardos em 1755; nas fraudes do registro paroquial com o desconhecimento do direito à terra por parte de quem a elas tinha direito pela posse útil com base na Lei de Terras, de 1850. Foram enganados: sua terra de trabalho foi registrada em nome de seus antigos senhores porque deles convertidos em meros agregados. Nesse sentido, muita propriedade privada de terra é aqui terra alheia e usurpada. Os devotos da comunidade de Canudos foram a Monte Santo e compraram a madeira necessária à construção da nova igreja do povoado, pagando-a à vista. Era dono do negócio o citado barão, que foi protelando a entrega da encomenda. Os sertanejos organizaram, então, uma procissão para buscá-la e retirá-la à força. À frente, alçada, a bandeira vermelha do Divino. Sabendo dos costumes e do monarquismo religioso ligado a essa celebração, denunciou ele os camponeses ao governador da Bahia como protagonistas de uma revolta monarquista. Derrotada uma primeira força estadual, o Exército envolveu-se e transformou uma procissão numa guerra. Que venceu a tiros de canhão contra casebres de adobe e pau a pique. A esperança camponesa era a das revelações do avesso. Para eles, o mundo de injustiça era o mundo de cabeça para baixo. Sua utopia libertadora brotava do avesso do mundo injusto. Até hoje, nos movimentos populares do campo, no Brasil inteiro, a bandeira vermelha do Divino é o símbolo da esperança profética dos pobres. É bandeira da fartura contra a fome, da alegria contra a tristeza, da comunidade contra a sociedade, para lembrar uma distinção sociológica de Ferdinand Tönnies, das duas estruturas sociais e opostas da sociedade contemporânea, a das pessoas e do nós, da comunidade, de um lado, e a do eu e dos indivíduos, da sociedade, de outro lado. Publicado em Eu& (Jornal Valor Econômico), Ano 24, Número 1.165, Sexta-feira, 30 de junho de 2023, p. 4. voltar |
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