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E, DE NOVO, SÃO JOÃO
Acadêmico: Gabriel Chalita
Enquanto eu sorria o sorriso da gratidão, olhava a fogueira enchendo de calor e de esperança a vida.

A casa dos meus sonhos nunca quis morar sozinha. Eu, desde menina, sonhei família.
Diferente da minha. Minha mãe foi autorizando um cansaço que aparentava uma idade que não tinha. Meu pai despertava em mim sentimentos dúbios. Nenhuma filha gosta de ver a mãe sendo soterrada de seus sonhos por homem perverso. Os ditos de desrespeito conferiam a ele risadas de amigos gordos de preconceito e silêncio na mulher que, ainda assim, o amava.

Eu sonhava com um outro homem para viver a vida. O sonho é, também, um ensinador de realidades. E foi em uma festa de São João. Eu nunca havia namorado. E já era mulher de ter desejos. O frio combinava com a fogueira que esquentava de alegria as nossas vidas naquele interior de antigamente. Brincadeiras simples eram suficientes. As pescarias, o correio-elegante, as argolas, a corrida de saco, a cadeia. Foi assim que me prendi.

Daniel cortava os pedaços do bolo de milho e alimentava o seu avô. Um jovem lindo distribuindo lindezas para um senhor sentado em uma cadeira de rodas. Nos vimos. Desviei o olhar. Ele veio em minha direção. Eu estava com Juliana, minha prima, mais atribuída do que eu na tarefa da sedução. Ela disse que queria aquele homem. Eu disse nada. Ele se aproximou e cumprimentou as duas. Mas foi em mim que ele parou. Foi em mim que ele parou a procura. Foi em mim que ele contou, de uma outra maneira, a história da sua vida.

O avô de Daniel morreu pouco depois do nosso casamento. E exigiu que nos casássemos em uma festa de São João. Três anos depois do primeiro olhar. E assim foi feito.

O nosso namoro foi um namoro respeitador das minhas crenças. Os exageros do meu pai ao contar o que fazia com as mulheres me preenchiam de medo. A doçura de Daniel foi limpando essas imprecisões de mim. Os homens não são todos iguais.

Um dia, minha mãe, depois de mais uma sequência de palavras ditas com desnecessidade pelo meu pai, olhou envergonhada para mim e disse, "Filha, já não tenho medo de sofrer, tenho medo de desaprender o sorriso". E ela nunca mais sorriu, até o dia em que descansou no cemitério que fica no alto do interior que nascemos. Nunca entendi por que ela não o deixou, nunca entendi a sua entrega, seu silêncio doído e sujo. A beleza foi se despedindo apressada. E meu pai chorou no sepultamento da mulher que sepultara antes.

Os dias vão trazendo novidades e empurrando dissabores. Sou das que dão espaço para outro pensar. Deixei de querer entender minha mãe e decidi construir minha casa, a que, quando menina, já era sonhada. Sem agressões, sem piadas, sem desrespeitos.

Daniel foi vasculhando meu interior com poesia. Foi paciente na primeira noite. Meu medo era paralisador. "Calma, meu amor, eu não sou seu pai". Foi a única vez que ele se permitiu me permitir a expulsar o que me expulsava de mim. As noites depois do medo foram lindas. E eu fui conhecendo o prazer no amor.

Os nossos filhos vieram, três. A nossa casa foi crescendo. E, sem querer construir um imaginário impossível, posso garantir que nunca houve desrespeito entre nós. As incertezas foram atropeladas por delicadas surpresas de um homem romântico. Até que, um dia, um câncer enlutou os meus dias. O médico anunciou seis meses de vida. E eu me vesti de uma dor disfarçada de palavras de entusiasmo.

Daniel, inventador de futuros, desmentiu o médico, enquanto voltávamos para casa, "Meu amor, ele está errado, eu vou viver muito ainda, com você". E, naquele dia, fizemos amor como se as notícias tivessem sido boas.

Vou economizar nas explicações de cirurgias e tratamentos. Já faz vinte anos do dia em que ele teria seis meses. E ontem, no dia de São João, completamos 30 anos de casados.

Faltam linhas e sobram palavras para dizer o que sentimos, quando dançamos a dança dos noivos. Ele me disse, enquanto beijava de beijos bons o meu rosto, o meu pescoço, a minha boca, "Meu amor, eu nunca quis ficar sozinho de você".

Enquanto eu sorria o sorriso da gratidão, olhava a fogueira enchendo de calor e de esperança a vida. Eu via as crianças brincando, sem celulares ou computadores, e filosofava, é preciso tão pouco para o comparecimento da felicidade.

O que sei é que as emoções nos dão tamanho. Minha amada mãe foi diminuindo com um morto que a matava antes da morte. E eu fui crescendo com a solenidade do amor. Cada dia ao lado do meu amor é um dia extraordinário. Agora, deixa eu deixar os pensamentos quietinhos e apenas sentir a dança de ontem que ainda dança em mim.

Obrigada, São João.



Publicado no site do jornal O Dia, 25 de junho de 2023.



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