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Acadêmico: Gabriel Chalita Eu gostava do seu fôlego com as palavras. Sempre fui mais próximo do silêncio, então, eu ouvia sem pressa os seus dizeres intermináveis sobre algum acontecimento.
Atendi minha irmã antevendo alguma notícia desagradável. É incomum um telefonema antes do nascer do dia. Era sobre morte. Disse ela sem qualquer introdução: "Morreu André, o mentiroso". Eu, imediatamente, adverti que não se fala mal de quem acabou de morrer. Ela não se intimidou: "Não estou falando mal, estou lembrando você qual André morreu, o mentiroso". Estou na porta dos noventa anos, morrer alguém que ocupou comigo espaços da curta vida é inevitável. Fiquei pensando em André. De fato, era mentiroso. E, assim, foi se fazendo. Os mais próximos, não sei se certa ou erradamente, foram aceitando. Algumas vezes o corrigi, principalmente quando éramos apenas nós. Ele, então, se desculpava sem se desculpar, colocando os exageros na pressa ou na forma desajeitada com que ouviu e partia para outro dizer. Fui percebendo que as mentiras diziam o que ele gostaria de ser. Sobre suas notas na escola. Sobre suas histórias de amor. Sobre o dinheiro dos pais. Sobre alguma viagem. Sobre algum aplauso. Sobre algum convite. Os amigos têm uma tendência a buscar justificativas que minimizem os erros dos que dividem a proximidade na travessia. Não quero aliviar a mentira e o seu poder enganador. Quero perguntar para mim mesmo o porquê. Até porque não se vive sozinho. Sozinho, se adoece. É o outro que poetiza as paisagens que têm o poder do encantamento. André contava vantagens. E, com isso, angariava alguma simpatia ou, ao menos, curiosidade. A tia que fez um sultão árabe se ajoelhar e suplicar que permanecesse. E ela disse ‘não’. Decidida a não ser uma a mais na coleção daquele homem. Gostei da história. Quis saber quem era a tia. Eu conhecia a família. A mãe, filha única. O pai com dois irmãos. Ele dava de ombros e desviava o assunto. O pai preferia morar em uma casa modesta, em uma rua modesta, mesmo sendo possuidor de uma fortuna incalculável. Mentira. O amadurecimento não mudou o hábito. Em uma roda de amigos, todos por volta dos sessenta anos, ele disse das três faculdades que havia cursado, medicina, engenharia e direito. Eu olhei não olhando para não aborrecer. A sós, afirmei: "Você nunca concluiu o curso de direito e jamais iniciou nem medicina nem engenharia". E a resposta não emprestou subterfúgios: “Tem razão, a idade traz esquecimentos". Eu, nesse dia impaciente, prossegui: "Não se trata de esquecimentos, é de mentira que se trata". E prossegui dizendo que as pessoas não gostarão mais ou menos dele por ter três faculdades ou nenhuma. André também nunca namorou as dúvidas. A qualquer pergunta, respondia. Mesmo se não fosse com ele. E sobre qualquer assunto. O fato é que os estranhamentos não nos apagaram a amizade. Eu gostava do seu fôlego com as palavras. Sempre fui mais próximo do silêncio, então, eu ouvia sem pressa os seus dizeres intermináveis sobre algum acontecimento. Depois dos oitenta, fui ficando mais tolerante e até gostava de vasculhar dentro de mim alguma inteligência que me ajudasse a discernir o que era verdade e o que era mentira do que ele dizia em nossos longos telefonemas. O tempo vai escapulindo das nossas contas e, quando acordamos, já é quase tempo de adormecer definitivamente. Quando eu era criança, jamais imaginava viver até os noventa; pensar em noventa, naquela época, seria eternidade. Hoje, parece que foi ontem que eu brincava de sonhar futuros, da mulher com quem me casaria, do emprego que eu teria, da casa à beira de alguma praia que eu construiria. Minha irmã diz que o que tenho de melhor é o ouvido de ouvir. Que tenho pressa nenhuma, quando se trata de alguém precisando dizer. Talvez tenha mesmo essa qualidade. Talvez tenham os anos me explicado que foi para esses encontros que eu nasci. Que graça teria a viagem a que damos o nome de vida, desacompanhados? A minha viagem teve todos os tipos de passageiros, alguns se foram cedo, outros, também cedo, só que viveram mais, como André, o mentiroso. Perdoo a mim mesmo por não limpar da minha lembrança esse aposto do meu amigo André. Hoje, rio sozinho das suas invencionices. Rio que, quando se aproxima do mar, fica mais vagaroso, mas, nem por isso, menos esperançoso. Será que do lado de lá nos encontraremos? Será que nos abraçaremos como tantas vezes por aqui? Será que André dirá mentiras das muitas moradas que ele já terá conhecido antes da minha chegada? Na foto, perto de onde descansam tantos livros lidos e rabiscados, muitos de nós. Alguns já se foram. André está lá. Se não fosse minha irmã, desacreditaria de sua morte. Ri sozinho, imaginando-o ligando para mim e dizendo, "Morri". Meu Deus, nem por descuido esse homem dizia verdades. Publicado no site do jornal O Dia, 11 de junho de 2023. voltar |
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