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FUTEBOL E RACISMO
Acadêmico: José de Souza Martins
Ao se transformar em negócio, foi banalizado e destituído do seu caráter propriamente esportivo.

A deplorável demonstração de racismo, de torcedores espanhóis, contra o jogador brasileiro Vinicius Júnior, do Real Madrid, no último dia 21, na disputa contra o Valência – o vencedor – não fica bem analisada e interpretada se reduzida à questão do preconceito nos estádios de futebol.

A questão é, sociologicamente, bem mais complicada. O futebol não teria se transformado em grande empreendimento econômico e mesmo político se não tivesse sido incorporado ao sistema de multiplicação da riqueza. Substituiu pelo conflito tópico e efêmero das partidas o conflito estrutural da luta de classes.

Ao se transformar em negócio, foi banalizado e destituído do seu caráter propriamente esportivo. Ficou vulnerável à concorrência em lugar da disputa.

Tornou-se o mais massificado dos esportes. Saiu do gramado do confronto entre dois times de 11 jogadores, que se tornaram atores secundários em face da multidão das arquibancadas. É nas arquibancadas que o jogo é jogado. O jogo já não é nem mesmo o verdadeiro confronto esportivo. Outras motivações conflitivas dirigem muito do que acontece no desenrolar de uma partida.

No futebol de hoje o verdadeiro jogo é invisível. Os do gramado são cada vez mais coadjuvantes de um enredo de invisibilidades, de uma trama de interesses que são outros, bem diversos dos do espetáculo de beleza esportiva, de esporte criativo, de obra de arte.

O futebol revelou talentos ocultos do homem simples, do operário (como Figueiredo e Guimarães, vieram do subúrbio fabril), do índio (como o Fulni-ô Garrincha), do negro (como o sempre menino do povo, Pelé). Revelou-se instrumento de robustecimento da democracia nascente. Justamente por isso, não é estranho que essa democracia da diversidade esteja sendo combatida nos estádios pelo racismo e pela violência do embate entre torcidas. Expressam a intolerância à diferença e à pluralidade, ao que é próprio da cultura democrática. Num país como este, uma singularidade notável.

Essa conflitividade, embora patológica, não é anômala. O futebol foi capturado pela necessidade política de institucionalizar o conflito social próprio do advento da sociedade industrial e moderna. Ganhou sentido como instrumento de controle social em face do crescimento do protagonismo, fora de controle, da classe operária e da centralidade da luta de classes na estruturação da nova sociedade criada pela industrialização. A história do futebol é a história da invenção de técnicas sociais de neutralização e direcionamento de tensões. Isso não lhe tira a beleza. Apenas o enfeia e dele faz expressão de contradições sociais.

É que há outros problemas por trás de manifestações como aquela contra o jogador brasileiro. Se a variedade de causas e de determinações do ódio pós-moderno, como o que vitimou Vinicius Júnior, não for considerada, dificilmente será possível desenvolver técnicas sociais de contenção ou controle dos efeitos antissociais do que na verdade são carências e frustrações. As de uma sociedade que foi considerada monopólio de brancos. E por isso trata o negro como um usurpador de oportunidades sociais cada vez mais escassas, como a dos jogadores negros, ricos e de sucesso.

Nesta sociedade, que é de fato de classes, o futebol ganhou funções sociais alienativas, gerou ilusões de ascensão social, real para poucos, impossível para a maioria dos torcedores. Deu forma antissocial a um cotidiano de impossibilidades. A violência física e simbólica nos estádios deforma o conflito social próprio da sociedade de classes, perde a legitimidade não tolerada de um direito social para ser mera delinquência tolerada.

O racismo nos estádios é um modo de contestar e repudiar uma das características mais importantes da sociedade moderna: a diferença como atributo pessoal e um direito da pessoa. Mas não é a raça nem a cor que vem em primeiro lugar para motivar a violência racial, em casos como este, contra o negro.
É a trama dos fatores sociais invisíveis da discriminação e da intolerância que decorrem da desigualdade social e dos seus êxitos diferenciais .

No futebol, tanto na Espanha quanto no Brasil, o ódio racial nos estádios é o do branco ressentido contra os negros vitoriosos que superaram a condição social adversa da pobreza a eles imputada e se tornaram ricos e famosos. Os brancos querem deles os seus gols, mas não os querem como pessoas e iguais. Chamá-los lá de “monos” e, aqui, de “macacos” é reviver concepções do tempo da escravidão, de dúvidas sobre a condição humana do cativo.

O frequentador de estádios é personagem da sociedade de consumo. Ele julga comprar o desempenho do jogador ao comprar o ingresso. Não raro age como comprador do direito de consumir o jogador. Esse racismo é isso: consumo covarde do atleta pelo torcedor, que, nesse tipo de sociedade, é cada vez mais um perdedor.




Publicado em Eu& (Jornal Valor Econômico),
Ano 24, Número 1.161, 2 de junho de 2023, p. 4.



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