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OS VASSALOS INSUBMISSOS
Acadêmico: José Renato Nalini
A vida autônoma dos paulistanos, sua vocação de não depender dos favores da Corte, explicam a resistência dos cortesãos a permitirem que aqui se instalasse a primeira Faculdade de Direito do Brasil.

Os vassalos insubmissos

São Paulo sempre teve uma vocação altaneira. Há algumas explicações. Longe do litoral, a gente de Piratininga não se acostumou às sedas e luxos que os navios traziam para os moradores das praias. Sua vestimenta era grosseira, doméstica. Própria para as lides. Gente do trabalho braçal e insano.

O isolamento geográfico, imposto pela muralha verde da Serra do Mar, afeiçoou o paulistano a se considerar desvinculado da Corte. Por isso chegou-se a falar em verdadeiro "país dos paulistas", que, segundo a lenda, chegaram a ameaçar de trancamento o Caminho do Mar, para garantir uma tão querida quanto necessária autonomia. As intrigas palacianas, próprias da mesquinhez dos áulicos, sempre incomodou os brios bandeirantes.

É certo que alguns observadores estrangeiros, como François Froger, que escreveu "Relação de viagem de Mr. De Gennes ao estreito de Magalhães", afirmaram que os paulistas haviam instalado uma espécie de República, praticamente independente dos soberanos portugueses. Essa versão exagerada foi desmentida por Frei Gaspar da Madre de Deus. Na verdade, o orgulho paulista, gerado pelo pioneirismo e pela capacidade de desbravar terras inóspitas, suscitou a versão de que seu destemor o tornara um povo constituído de "vassalos insubmissos" à Coroa Portuguesa.

Essa fama foi desmentida pelo poeta da Inconfidência, Cláudio Manuel da Costa, ao assinalar: "Os naturais da cidade de São Paulo, que têm merecido a um grande número de geógrafos antigos e modernos serem reputados por uns homens sem sujeição ao seu soberano, faltos de conhecimento e respeito que devem às suas leis, são os que nesta parte da América têm dado ao mundo as maiores provas de obediência, fidelidade e zelo pelo seu reino".

Opinião referendada por Lacerda de Almeida, em seus "Diários de Viagem": "o caráter dos paulistas, inteiramente desfigurado por todos os historiadores que, discorrendo por todo mundo, ao mesmo tempo que estão encerrados nos seus gabinetes, tendo por verdadeiras as notícias dadas pelos êmulos e rivais, os capitulam por bárbaros, como se o valor, resolução e intrepidez dependessem de barbaridade, e não de ânimos honrados e ambiciosos de glória".

Resolução e intrepidez nunca faltaram aos paulistanos e esse espírito indômito contaminou todos os paulistas. Nunca disputaram as benesses da Corte. Não adulavam. Presidiam ao seu próprio destino, promovendo ação colonizadora que Sérgio Buarque de Holanda considera original. Um processo de adaptação contínua a condições específicas de ambiente americano, que se dispôs a adotar padrões rudes e primitivos, pois essa a natureza em que vieram desenvolver a sua civilização.

Por volta de 1690, um escritor anônimo, citado por Capistrano de Abreu em "Capítulos de História Colonial", afirmava que os paulistas eram "homens capazes de penetrar todos os sertões, por onde andavam continuamente, sem mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e raízes de vários paus, pelo hábito que tinham dessa vida". Por isso é que, enquanto outras povoações à beira-mar conviviam com outros estrangeiros, além dos portugueses e espanhóis, em São Paulo a vinda de um inglês causava sensação. Conta-se que pessoas de todas as idades se aproximavam curiosas da casa em que se hospedou um inglês, ávidos de verificar como se vestia, como e o que comia. É o que narra Amador Florence, em "Curiosidades do censo paulistano de 1765".

A vida autônoma dos paulistanos, sua vocação de não depender dos favores da Corte, explicam a resistência dos cortesãos a permitirem que aqui se instalasse a primeira Faculdade de Direito do Brasil. Silva Lisboa considerava "detrimentosa" a viagem por terra a São Paulo. Seus rios transbordavam, as grandes cachoeiras impediam a comunicação com os portos. Isso impediria que os livros chegassem até aqui!

Incontáveis as razões para São Paulo adotar o lema "Non ducor, duco!", fiel à sua História. A vassalagem nunca esteve em seus projetos. Não foram poucas as traições colhidas ao longo dos séculos, mercê dessa postura que só justifica e legitima o incomparável orgulho de ser paulista.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 01 06 2023



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