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Acadêmico: Gabriel Chalita Eu sei o poder das palavras. As palavras são como aromas que penetram pelos poros dos sentimentos. E ficam.
É noite. Minha alma já não me autoriza outro pensar. No auge dos meus desatinos de costurador de passados, aumentei a dor do meu filho. Eu sei o poder das palavras. As palavras são como aromas que penetram pelos poros dos sentimentos. E ficam. Os perfumes do corpo se dissolvem em horas; os da alma, não. Quando vi os cortes do meu filho, a duplicidade do mundo, amor e ódio, enroscou em mim e sabotou minha sabedoria. Tenho um único filho. Carlos mora com a mãe. Nos separamos há algum tempo. Carla e eu tivemos uma história linda e um dia, um triste dia, não sei, vi Roberta. Achei correto dizer à Carla. Achei correto desdizer o que, há anos, dizíamos e fui viver um outro amor. O amor com Roberta não era amor, é o que sinto hoje. O que sinto nunca é definitivo. Ao menos isso. As verdades dos meus sentimentos são provisórias. Depois dos desejos intensos, Roberta e eu fomos nos estranhando. Tive vontade de voltar para Carla. Tive vergonha. Tive medo do recomeço. Carlos viu o sofrimento da mãe. Eu nunca deixei de estar. A não ser por trabalho. A não ser por intermináveis viagens. Não. Eu deixei de estar. Fui ausente até porque imaginava que minha presença causasse dor em Carla. Ouvi dela pedras. E discordei. Ninguém pode ser culpado por se apaixonar. Hoje, não sei se concordo. Como disse, minhas verdades são provisórias. Carla não teve outro, até então. Disse que preferia a calmaria do silêncio às inconstâncias. Eu não era inconstante. Vivemos um amor de 10 anos. E, só então, desautorizei nossa história. Ela disse que Carlos nunca me perdoou. Eu não sei o que ela dizia a ele. Sei o que ontem ele me disse. Vi meu filho com as mangas da blusa cobrindo os braços em um dia quente. Quente fiquei, quando forcei as mangas para cima. Quando vi os cortes, mais que um, mais que dois em seus braços finos. Gritei absurdos. Meu filho se automutilando. Meu filho trancado o dia inteiro em um quarto sem luz. Meu filho desistindo da luz. Falei a ele dos meus sucessos. Erroneamente. Um fato é que dinheiro eu sempre garanti aos dois. Um outro fato é que vim de família pobre e não tive tempo para depressões. Um fato pior ainda é eu pensar assim. Meu filho olhou o meu monólogo e disse nada. Eu ia piorando. Dizendo que não aguentava mais ter um filho inútil. Eu disse isso. Lamentavelmente, eu disse isso. Carlos vai fazer 18 anos. Diz a mãe que não gosta de gente. Que prefere o quarto. Teme ela que o excesso de silêncio faça com que ele abrace o silêncio definitivo. Eu ouço e digo que não. Que isso não vai acontecer. Digo com a ingenuidade de quem diz controlar o mundo dos outros. Foi a primeira vez que bati no meu filho, quando ele disse que eu era ninguém para falar de amor. Foi a frase que ele construiu depois de eu dizer do meu amor por ele. Então, bati. Ele não reagiu. Apenas me olhou sem me olhar. Era como se a dor do tapa fosse nada diante do acúmulo de dores dos meus erros. O pai que ele dizia tanto admirar. Meu Deus, como posso acertar tanto nas escolhas profissionais e errar tanto nos amores mais essenciais? Meu filho é um pedaço de mim. Meu filho sou eu inteiro. Mesmo quando eu me distraí, era ele meu filho. É ele meu filho. Já não sei o que fazer. Pensei em convidar para que trabalhe comigo. Pensei em voltar para casa. Pensei em pedir perdão. A noite já vai engolindo o tempo, e o meu medo é de não amanhecer no tempo necessário de arrumar. Meu Deus, rezo ao meu pai, tão sem dinheiro, tão sem estudo e com sabedoria tão maior que a minha. Dias lindos vivemos em uma casa cujos cômodos eram pintados de amor. Minhas irmãs e eu ouvíamos histórias e cantorias no final dos dias. Com dificuldade, ele formou todos nós. Era lindo ver o amor entre os dois, minha mãe e meu pai. E o brincar em família. E as broncas nos tons corretos. Os passeios simples na casa de praia de tia Eulália. Todos no único quarto. O conforto se chamava aconchego. Onde foi que rasguei de mim o que ensina a felicidade? Amanhã, vou começar a limpeza. Ainda dá tempo de costurar, não o passado, mas o que tem passado dentro de mim, aprontar o caminhar das linhas, para arrumar sem causar mais dor. Estou pronto para ser pai. Só peço a Deus que ainda dê tempo... Publicado no site do jornal O Dia, 29 de maio de 2023. voltar |
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