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ARTE E LOUCURA
Acadêmico: José de Souza Martins
A Semana de 1922 foi um grito simbólico de demolição da cultura de expressões em formas convencionais de dizermos a nós mesmos a nossa competência de ser postiços, imitadores competentes dos estilos e modos da Europa civilizada.

Encerrou-se no dia 20 de maio, na sala da America’s Society, em Nova York, a exposição do artista plástico brasileiro Arthur Bispo do Rosário, “Bispo do Rosario: All Existing Materials on Earth”. Obras do artista foram apresentadas em algumas ocasiões, no Brasil. Tive oportunidade de conhecer algumas delas na exposição de “Imagens do inconsciente”, na Mostra do Descobrimento, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, nas comemorações do quinto centenário do Descobrimento.

Ainda estamos nos momentos residuais do clima das comemorações da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. Mas surpreende que não se tenha aproveitado a efeméride para incluir no rol dos eventos comemorativos a celebração da obra dos autores brasileiros que na literatura, na pintura, na escultura deram há cem anos, em diferentes lugares do Brasil, contribuições decisivas para o que foi a explosão do modernismo entre nós.

O preconceito presidiu a minimização da competência dos autores que não representavam a euforia festiva dos bem nascidos nem do grupo dos considerados normais. Os que vinham das matrizes sociais e históricas da inovação e da modernização técnica e econômica que começou a se difundir aqui em meados do século XIX.

Após a Abolição da escravatura, já na década final do século, a modernização econômica acarretou mudanças no modo de vida, a importação de equipamentos e ideias e sua adaptação à cultura brasileira, de fato sua reinvenção e a criação de matrizes de criatividade em todos os campos da vida e do conhecimento. Na diversidade dos tempos sociais dos diferentes âmbitos da realidade, nós nos tornamos pós-modernos antes de sermos modernos como sugere Nestor Garcia Canclini. Nesse sentido, modernistas sem querer.

A Semana de 1922 foi um grito simbólico de demolição da cultura de expressões em formas convencionais de dizermos a nós mesmos a nossa competência de ser postiços, imitadores competentes dos estilos e modos da Europa civilizada. Como a poetisa Francisca Júlia da Silva, excepcional parnasiana, admirada até mesmo pelos melhores do gênero, sendo, talvez, melhor do que eles.

Numa sociedade em que normais eram as exceções, foi ela considerada homem quando da publicação de seu primeiro livro. Mulheres não eram consideradas capazes de fazer poesia com aquele rebuscamento lírico e formal que caracterizava seus sonetos.

Na celebração do centenário, tampouco nos lembramos da obra insurgente dos artistas operários do Grupo Santa Helena, que Maria Cecília França Lourenço, em seu livro Operários da Modernidade, de 1955, destacou devidamente.

Acho que a única lembrança significativa foi a de Orandi Momesso, que editou a Autobiografia de Raphael Galvez, organizada por José Armando Pereira da Silva. Igualados pela relativa modéstia dos meios de vida, Galvez morava na mesma Barra Funda, em que morava Mário de Andrade, desigualados, porém, pelas diferenças de visibilidade.

As omissões na celebração indicam uma diversificada concepção do humano na São Paulo daquela época. Nesse sentido, eu me sinto animado a contrapor ao grupo da Semana, todos os outros modernistas que, vindos de outra extração social e de outro perfil humano, tiveram sua marginalização confirmada e reiterada em 2022.

É tentador e necessário incluir no catálogo dos modernistas reverenciáveis, Raphael Galvez, sem dúvida. Mas também, e até especialmente, Bispo do Rosário pelo radicalismo de sua marginalidade social. Também ele era um trabalhador. Era preto e se tornou artista ao se tornar louco. A loucura o libertou para si mesmo.

O seu “Manto da apresentação” documenta uma forma inovadora de expressão artística, a do que Antonio Candido define como das “necessidades expressionais”. Houve outros artistas loucos, cujas obras foram expostas na mostra do quinto centenário, que podem ser identificados pelo modo como documentam essas necessidades. A carência de dizer o não dito e o invisível e indizível.

O “Manto” foi criado para que Bispo, na morte, se apresentasse perante Deus, trajando-0. Em pano de saco de estopa, bordou nele um conjunto de alegorias, muitos números, palavras, expressões e nomes de muitas pessoas que conhecera e gostaria que Deus as conhecesse e delas se lembrasse. Utilizou restos de materiais, de pendões e barras de cortinas, e deu a sua obra uma beleza imponente.

O “Manto da apresentação” se situa antropologicamente no que Oscar Lewis define como “cultura da pobreza”, o preenchimento dos vazios da miséria com restos da sociedade da abundância. Bispo vira do avesso este mundo de exclusão social, com sua estética subversiva, na inesperada lucidez da loucura. Numa obra de arte.




Publicado no suplemento "Eu& Fim de Semana", do jornal Valor Econômico, 26 de maio de 2023.



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