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A PRIVAÇÃO DO FUTURO
Acadêmico: José Renato Nalini
A curta permanência de cada um de nós neste planeta - algumas décadas, não mais - justifica a contínua busca do amor.

A privação do futuro

A humanidade tem consciência de que uma vida se acaba. O destino comum a todos os vivos é a morte, a mais democrática das ocorrências. Só que de tanto temor, procura-se evitar pensar no desaparecimento definitivo. Disfarça-se, tergiversa-se, mas ela está ali, a angustiar os que não se esquecem dela.

A leitura de "Arendt. Entre o amor e o mal: uma biografia", da sueca Ann Heberlein, oferece oportunidade para refletir sobre o que não se quer pensar. Pois "sobre a vida sabemos alguma coisa, mas sobre a morte sabemos pouco. A morte é, como escreve o filósofo Vladimir Jankélévitch, impensável. Não consigo imaginar o mundo sem mim, e não consigo imaginar não existir. A ideia da morte é uma espécie de contradição: "Nem meu nascimento nem minha morte podem aparecer-me como experiências minhas", observa outro filósofo, Maurice Merleau-Ponty".

Muita gente já escreveu sobre a morte e eu também. Foi após perder três pessoas amadas: meu irmão caçula, cuja partida ocasionou a de meu pai, que foi minguando de desgosto e pouco depois também deixou de existir e, finalmente, minha mãe. Para suportar a separação dolorosa, escrevi "Pronto Para Partir?", indagação para a qual respondi então e continuo a responder: "Não me sinto pronto ainda!". Mas a passagem dos anos faz com que essa possibilidade seja cada vez mais próxima, cada vez mais provável. Não se sabe o dia, nem a hora. Mas o acontecimento está marcado e dele não se pode fugir.

Freud também escreveu sobre a morte: "De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores". Há ficções em que o personagem imagina a própria morte, o seu velório, as pessoas que se despedirão dele, os comentários feitos, o sepultamento e tudo o mais. Quando criança, ficava apavorado com a ideia de ser enterrado vivo. Pois em minha cidade, Jundiaí, tinha sido frequente a exumação de corpos para acolher novos falecidos e encontrar o esquife arranhado, evidência da luta de quem sofreu um ataque e, ao acordar, viu-se trancado num caixão, a sete palmos de profundidade.

Edgar Morin, o educador, filósofo, pensador arejado, que já ultrapassou cem anos e continua em atividade, é considerado o antropólogo cuja concepção de morte é instigante, diz que a ideia de morte "é a mais vazia das ideias vazias", cujo conteúdo é "o impensável, o inexplorável".

Para o já mencionado Jankélévitch, o medo da morte é o maior e mais fundamental do ser humano: "Tudo o que fazemos, fazemos para evitar a morte, e quanto mais perto chegamos dela, mais relutamos. Em "A Negação da Morte", Ernest Becker descreve, como que num eco a Jankélévitch, o medo da morte como a fonte de todos os medos e todos os atos humanos".

Seja como for, vamos morrer de verdade. No fundo, estamos convencidos de nossa própria imortalidade. A experiência da morte é sempre a de outrem. Nunca ninguém vivenciou a própria morte.

Diante disso, é preciso valorizar a vida. Essa dádiva gratuita, é o maior presente que se recebe. Ela precisa ser bem administrada. Em todos os aspectos. Cuidar da saúde, cuidar da aparência, cuidar de se conhecer o quão mais profundamente se possa.

O "conhece-te a ti mesmo" continua atual e imprescindível. Como superar dificuldades se não sabemos qual será o nosso comportamento diante da ocorrência daquelas vicissitudes a que todos estamos sujeitos?

Há pessoas que chegam à terceira ou quarta idade e não se conhecem. O exercício da meditação, a reflexão sobre si mesmo, a procura do "eu" que pode ficar oculto, são operações mentais saudáveis. Quando bem sucedidas, elas aplainarão o caminho para o relacionamento com o outro. O ser humano é gregário por natureza. À debilidade física, a necessitar de cuidados permanentes quando do nascimento, acrescenta-se a vontade de viver gregariamente. Vive-se em sociedade porque se precisa e porque se quer.

A alteridade é um valor do qual não se pode descuidar. Minha vida é minha, mas é também daqueles aos quais eu amo. Daqueles que precisam de mim, assim como eu preciso deles.

Se a vida ocorre nesses dois intervalos, o nascimento e a morte, exatamente por ser finita é que ela é muito valiosa. Minha vida em comum com quantas outras vidas?

A curta permanência de cada um de nós neste planeta - algumas décadas, não mais - justifica a contínua busca do amor. Este sentimento é superior à morte e é a mola propulsora de tudo quanto se faz sobre a face da Terra. Quem ama não se amargura nem se atormenta diante da irreversível realidade: mais dia, menos dia, iremos para não mais voltar. Somos seres privados de futuro. É bom se acostumar com isso.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 16/05/23



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