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O TEMPO DE ARRUMAR AS MALAS
Acadêmico: Gabriel Chalita
Nos inícios, o fogo da paixão devora as diferenças. Aos poucos, as diferenças vão vencendo o tal fogo. É como água fria.

Foi uma difícil decisão. Priscila ainda pode ser encontrada dentro de mim. O tempo de arrumar as malas nem sempre é o tempo de desviver o amor. Quando fecho os olhos, as histórias voltam a revirar em mim o que não mais me pertence. Sempre tive dúvidas dos seus sentimentos. Aguardei o tempo, aguardei que os nossos tempos se casassem, de alguma maneira.

Eu sou dos amanheceres. Ela gosta da noite. Eu sou da simplicidade. Ela gosta de mostrar o que sabe, de mostrar o que tem. Eu cometo erros nas regras da elegância na sociedade. Ela, não. Ela diz, sem dizer, da vergonha que sente de mim. E eu fecho os risos e silencio a alegria.

Foi assim que foi. No início, era o tempo das possibilidades. Acho que ela gostava de como nos gostávamos. E eu, tão satisfeito com os dias, desacreditava de qualquer outra necessidade. Ela sempre necessitava de mais alguma coisa.

Foi mudando as minhas roupas. Foi exigindo algumas posturas. Foi dizendo que me faria um homem. E eu fui permitindo. Lembro uma vez em que a vi chegando tão cheia de tantos enfeites. Achava muito para um passeio apenas. Enquanto passeávamos, os meus olhos olhavam outros olhos. Mulheres simples vendendo coisas na calçada. Sem enfeites. Crianças brincando na rua. Sem enfeites. Amigos meus, que ela desprezava, com costumes corriqueiros. Sem enfeites.

O tempo foi, então, mudando. O sol bonito dos inícios virou nuvem carregada de dissabores. No nosso jogo de afetos, eu era sempre o perdedor. Dizia elogios e ela dizia nada. Era como se soubesse. Se soubesse tudo. Dizia eu sobre alguns assuntos, e ela ou silenciava ou respondia que não era tema para mim. Qual seria o meu tema? Servir na cama de um alívio para a solidão? Servir de servo dos intervalos de seus compromissos sociais?Ela dizia que eu ficava mais bonito, quando silenciava nos eventos. Ela gostava de eventos, e eu sempre gostei do silêncio. Do silêncio voluntário, não do imposto.

Venho de uma família simples, diferente da dela. Venho de um espaço pequeno em que sempre coube muito amor. Ela vem de espaços grandes, luxuosos, cheios de vazios. É o que eu fui sentindo. Eu que eu tentei mudar. Não. Não era ela que eu queria mudar. Era seu olhar apenas. Tão viciado em enfeites. Tão escravo do que escraviza.

Nos inícios, o fogo da paixão devora as diferenças. Aos poucos, as diferenças vão vencendo o tal fogo. É como água fria. Eu tentei. Lembro-me de um dia em que ela voltou tarde. Fez barulhos. Eu esperei um abraço na cama. Eu teria que acordar cedo. Esperei. Fui abraçar o seu corpo. Ela disse do cansaço. E da irritação de me ver levantar tão cedo. Pensei que já era tarde para tentar novamente.

Quando disse que iria embora, ela falou que nada me daria. Eu escrevi compaixão no meu olhar. Ela sempre teve muito mais dinheiro do que eu. Eu jamais quis nenhum dinheiro dela. Eu só quis amor. E alguma admiração. Ela admirava meu corpo, não minha alma. Nenhum amor sobrevive às partes sem o todo.

Minha teimosia estava em imaginar que o meu amor seria forte o suficiente para apresentar a ela a felicidade. Felicidade não é coisa que se apresente. Aprendi.

Felicidade é caminho cotidiano na estrada do viver. E sem pesos é mais fácil.

Foi, então, que compreendi o tempo de arrumar as malas e de aceitar o tempo do sofrer. E de aprender com ele. E de saber esperar o tempo dos alívios para novamente amar.

Se levo ódio do fim? Não. O fim do meu existir é o amor. Levo gratidão pelos tempos em que vivemos sem maquiagens nem enfeites. Em que sozinhos rimos, em que sozinhos estacionamos os ponteiros do relógio para ter um tempo só nosso. Não tive o poder, não temos o poder de eternizar os tempos assim...

Então, acabou antes de acabar em mim. E, talvez, antes de nela acabar. Foi uma decisão difícil. Foi uma decisão acertada. Não posso ser quem não sou para servir aos caprichos de quem não quer caprichar na arte de compreender o que é o amar.

Duas histórias se fazendo uma sem deixar de ser duas. Duas pessoas arrumando a casa para receber os dias de mãos dadas e as noites também. Perfeitos? Não. Parceiros do tempo da construção.



Publicado no site do jornal O Dia, 23 de abril de 2023.



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