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O HERÁLDICO BRIO DO PAULISTANO
Acadêmico: José Renato Nalini
O paulistano desconfiava do estrangeiro, até porque os que aqui chegavam eram pessoas estranhas.

O heráldico brio do paulistano

Acolhedora e aberta a todos os que a procurem, a cidade de São Paulo tem razões para cultivar um orgulho singular e bem consistente. Em sua "Autobiografia", o paulistano Francisco de Assis Vieira Bueno escrevia em 1899: "As antigas famílias paulistas de puro sangue, mesmo não sendo opulentas (e poucas se contavam relativamente opulentas) eram profundamente imbuídas d'um alto sentimento de própria estima, que lhes dava certo cunho aristocrático, pela severidade e recato dos costumes; pelo escrúpulo na escolha das alianças matrimoniais, quanto ao puritanismo da raça; pela honorabilidade do caráter; pela probidade nos negócios; tudo isso acrisolado por um absoluto predomínio das crenças religiosas".

Esse código estritamente padronizado de comportamento das famílias patriarcais e a definição prévia, funcional e cultural, das camadas de classe, contrastavam com a fluidez, o ecletismo e o anonimato que tudo permitem e que a sociedade urbana de hoje proporciona ao indivíduo.

Isso acontecia mesmo dentro das residências das famílias diferenciadas. O tratamento cerimonioso era na segunda pessoa do plural: "vós", mesmo entre irmãos ou entre pais e filhos. Para que alguém fosse recebido dentro da residência familiar, havia uma prévia seleção. Apenas o chefe da família fazia as honras da casa. Mas após o minucioso exame do personagem, o dono do clã, espontaneamente, lhe oferecia "sua amizade, seu coração e sua casa, como se fosse a dele, o que de modo nenhum deve ser tomado como uma simples fórmula", na expressão de Afonso de Freitas, em suas "Tradições e reminiscências paulistanas".

A Província de São Paulo não era de fácil acesso. Basta lembrar a muralha verde da Serra do Mar, a inexistência de estradas, o difícil caminho pelo litoral, que não eliminava a aventura de se enfrentar o áspero percurso de cerca de oitocentos metros, da orla até o planalto.

Isso explica a inexistência de hotéis. Quem precisava viajar a São Paulo e fosse de respeito, era obrigado a trazer cartas de recomendação que garantiriam a hospitalidade em residências particulares. O próprio Saint-Hilaire, antes de ser bem recebido pela provinciana fidalguia da época, viu-se obrigado a se abrigar um miserável pouso de tropas. Conta que seu quarto se abria para um terreno lamacento, úmido, sujo e era sem janelas - como todas as alcovas de então - e tão pequeno que só bastava para a sua bagagem.

O paulistano desconfiava do estrangeiro, até porque os que aqui chegavam eram pessoas estranhas. Quando um súdito britânico chamado John Mark Liotard pediu autorização para instalar um novo matadouro para satisfazer à crescente busca de carne de vitela, de porco e de carneiro, a Câmara Municipal a recusou.

A desconfiança nutrida pela introvertida comunidade está explícita numa postura de 1831: "Ninguém poderá dar pousada, ou alugar casa, a pessoa desconhecida neste Município, por mais de vinte e quatro horas, sem que primeiro seja apresentada ao Juiz de Paz e dele obtida, uma declaração de sua entrada, e só com este documento se lhe poderá prestar residência. Os contraventores serão castigados com quatro dias de prisão e dois mil reis de multa".

Entretanto, São Paulo não dispunha da elegância da Bahia, de Pernambuco e do Maranhão. Nesses estados já existia o mobiliário norte-americano e os espelhos franceses. Bastava aos paulistanos a fileira de pesadas cadeiras coloniais e, em lugar do candeeiro de vidro e velas, aqui se utilizava o de latão com óleo de rícino.

Hércules Florence considerou as famílias hospitaleiras, corretas e sóbrias. Consumiam pouco vinho e tinham "mesa simples, mas agradável". Rugendas comentou "a grande simplicidade dos costumes dos paulistas, a ausência de luxo, mesmo nas classes elevadas, principalmente o que diz respeito aos móveis e aos utensílios de cozinha". A cordialidade impregnava as relações sociais. "A música, a dança, a conversação substituem, entre eles, o jogo, que é um dos principais divertimentos na maioria das outras cidades do Brasil".

A singeleza estava também na arquitetura. A beleza despretensiosa no emprego racional dos materiais locais, o reconhecimento de configurações e usos sociais e a fidelidade à tradição de vida.

A ostentação, o exagero do nouveau riche é coisa posterior e exótica. Não faz parte das tradições paulistanas, hoje sufocadas pela vocação cosmopolita da megalópole cuja tradução só pode ser multifacetada e dispersa.



Publicado Blog do Fausto Macedo/Estadão, 23 de abril de 2023.



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