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O CENTENÁRIO DE LYGIA
Acadêmico: José Renato Nalini
Não interessa quantos anos Lygia Fagundes Telles teria. O que vale a pena é pensar em sua obra imperecível.

O centenário de Lygia

Hoje, 19 de abril de 2023, algumas homenagens serão prestadas à imortalíssima Lygia Fagundes Telles, falecida em 3 de abril de 2022. O ano de 1923 foi o apontado em sua biografia como o de seu nascimento. Lygia não gostava de falar em idade. Lembro-me de que alguns cientistas criaram uma espécie de orquídea híbrida e denominaram as novas flores de Tomie Ohtake, Maria Della Costa e Lygia Fagundes Telles. Quando solicitada a fornecer o número de seus anos, ela declinou. "Não se indaga a idade a uma dama!".

Ocorre que no momento em que sofreu fratura de fêmur, foi necessária a apresentação de documentos. Ela havia destruído suas cópias. Foi preciso pesquisar no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito da Sé, o único provável repositório dos assentos de nascimento de paulistanos à época. E ali se encontrou um assento noticiando que ela viera à luz em 1918. Assim, o centenário de verdade ocorreu em 2018, ano em que ela estava bem. Lúcida, produzindo, falante e partícipe. Não perdia sequer uma reunião da sua Academia Paulista de Letras, todas as quintas-feiras.
Bebia o seu vinho. Dava sua opinião e, quando o caso, bradava a sua indignação com tanta coisa que é mesmo para causar revolta na consciência dos seres éticos que sobrevivem nesta balbúrdia.

Não interessa quantos anos Lygia Fagundes Telles teria. O que vale a pena é pensar em sua obra imperecível. A mulher corajosa que enfrentou o autoritarismo, a romancista que teria todas as condições de ter recebido o Nobel de Literatura - mas que chegou a ser contemplada com o Prêmio "Camões", para os escritores de Língua Portuguesa, faz falta, sim, aos familiares e amigos. Mas os leitores continuam a sorver sua belíssima obra. Os contos que são primores de imaginação e talento. Os romances que marcaram época e foram convertidos em filmes e novelas.

Lygia não foi apenas espectadora de sua época. Ela participou de tudo aquilo que interessa ao Brasil, não só em termos de literatura, mas de cinema, de comportamento político, de educação, de saúde, de meio ambiente. Era defensora da flora e da fauna. Em seus passeios pelos Jardins, bairro que escolheu para morar e onde findou seus dias, abraçava as velhas árvores, que antevia condenadas pela cruel motosserra e pela insensibilidade dos dendroclastas.

Atendia, com generosidade, leitores de todo o Brasil e das nações lusófonas, respondendo a uma correspondência intensa. Não se recusava a prestigiar iniciantes. Era generosa e incentivava as vocações, com o seu especialíssimo apreço por esse verbete. Quantas vezes ainda estou a ouvi-la a repetir: "Vocare! A palavra latina que indica chamado!" A voz que convida a seguir um caminho e que, para o verdadeiramente vocacionado, tem apelo irrecusável.

Era cinéfila e protetora de cineastas. Esteve ao lado de Paulo Emilio Salles Gomes, na criação da Cinemateca, instituição que defendeu até o final de seus dias, inconformada com o pouco apreço dos últimos anos por essa memória do cinema brasileiro que quase soçobrou.

Foi supermãe do cineasta Goffredo da Silva Telles Júnior, cujo talento exaltava e a quem dedicou parte substancial de sua prolífica obra. Amiga leal, estava ao lado daqueles aos quais estimava em todos os momentos: nos felizes e, principalmente, nos mais tristes. Nas partidas, nas despedidas, nos infortúnios.

Aclamada pela crítica, alvo de homenagens e convites, relacionava-se com idêntica elegância, tanto com celebridades, como com humildes seres humanos que se encantavam com seus livros.

Suas tardes e noites de autógrafo congregavam milhares de pessoas e as filas intermináveis caminhavam com excessivo vagar, pois não se recusava a um diálogo simpático e amigo, nem às fotos que se tornaram verdadeira praga, depois da conversão dos celulares em câmeras fotográficas.

Cultuava os antepassados com crescente carinho. Emocionava-se ao falar dos pais. Tive o privilégio de visitar com ela o túmulo de seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, no Cemitério da Ordem Terceira do Carmo, ao lado da necrópole da Consolação. Por sinal, um dos passeios a que nunca se negava. E a cada vez que, a caminho do Arouche, para as reuniões da sua Academia, passava pela Consolação, persignava-se e lembrava dos que ali repousavam.

Espírito magnânimo, inteligência esplendorosa, paradigma ético de intelectual, Lygia Fagundes Telles é uma estrela que nunca se apagará do firmamento universal. Presente da Providência ter convivido com você, amada Lyginha!

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, 19 de abril de 2023.



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