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OS DOIS NASCIMENTOS DE SÃO PAULO
Acadêmico: José Renato Nalini
Não é errado dizer que a cidade de São Paulo teve duas fundações.

Os dois nascimentos de São Paulo

Não é errado dizer que a cidade de São Paulo teve duas fundações. A primeira foi Santo André da Borda do Campo, criada por João Ramalho. A segunda, a missão dos jesuítas e o colégio que teve início em 25 de janeiro de 1554, na colina estratégica situada na confluência dos rios Anhangabaú e Tamanduateí.

Para Richard M. Morse, no clássico livro "Formação Histórica de São Paulo", tais "povoações concretizaram dois temas centrais, que se mantiveram em contraponto ao longo da história da cidade. Santo André representa o princípio de adaptação e miscigenação; seus habitantes eram verdadeiros "americanos", - voluntariosos, pragmáticos, fieis aos interesses locais, desconfiados de "programas" e ideologias, vivendo de um dia para outro". Por sua vez, "o São Paulo jesuítico toma partido pelo racionalismo e o ecumenismo; seus fundadores eram a ponta de lança de uma fé militante, universalista; no mundo que idealizavam, os diversos povos seriam "reduzidos" em comunidades organizadas segundo princípios comuns; não desejavam aceitar nem fazer guerra contra os ameríndios, mas remodelá-los conforme uma imagem nova; e o momento presente nada mais era do que um trampolim para o futuro. Santo André se identificava ao processo, São Paulo à teleologia".

As duas comunidades podem ser sintetizadas como amálgama consistente de experiência, treinamento e motivação. Os jesuítas resistiam aos hábitos pagãos e licenciosos dos portugueses e mamelucos de Santo André. Não eram bons exemplos para os que passaram a habitar o planalto da pauliceia. Nada obstante, os dois povoados se respeitavam. Os jesuítas concebiam Santo André como reservatório valioso de mão-de-obra e experiência prática. Já o fundador João Ramalho e seu sogro, o chefe indígena Tibiriçá, admiravam a disciplina dos padres e a clarividência com que haviam escolhido uma posição estratégica, excelente para a defesa. Mais ainda: selecionaram área abundantemente servida de águas. Reflexão para nós: o que fizemos dessas águas?

Foi por isso que Santo André, poucos anos depois, pleiteou ao Governador a sua transferência para a gleba dos jesuítas. A permissão veio em 1560 e a fusão se completou em 1562, pouco antes de um grande ataque dos Tamoios.

À medida que a povoação aumentava, surgia o confronto entre os colonos e os sacerdotes. Aqueles queriam a dessacralização do núcleo urbano, estes pensavam de forma diversa. Foi por isso que o centro histórico foi quase simbólico. A ocupação se deu num padrão rural dispersivo. As casas-grandes eram habitadas pelas matronas e alguma criadagem, enquanto que os proprietários ganhavam espaço na conquista de um território mais amplo. Enquanto as cidades coloniais seguiam um padrão hispano-renascentista, geometricamente delineado, São Paulo fugiu à regra e observou a sua topografia. Estava condenada a crescer sem planejamento.

A situação geográfica e topográfica de São Paulo não incentivava a chegada de caudais volumosos de migrantes europeus. Apenas alguns aventureiros se arriscavam a superar a barreira da Serra do Mar. Imagine-se o que era subir cerca de oitocentos metros, agarrando-se a cipós e a troncos de árvores. Havia perigos como os indígenas ainda não cristianizados, feras e cobras. Enquanto isso, já se desenvolviam os engenhos de açúcar do Nordeste. Era a preferência dos portugueses, que hesitavam em adentrar à selva ignara.

Os afortunados não procuravam São Paulo. Havia, é certo, alguns pobretões com títulos hereditários de nobreza, que aqui chegavam. O forasteiro emigrara em péssimas condições econômicas e, segundo se sabe, 60 eram portugueses, 15 açorianos e madeirenses, 19 da Espanha e o restante dos Países-Baixos, Itália, França, Inglaterra e Alemanha, de acordo com relato de Alfredo Ellis Júnior, em "Capítulos da História Social de São Paulo".

A atratividade de grandes extensões de terras gratuitas, a natureza extensiva da pecuária e da agricultura então praticada, os índios servindo em cada latifúndio mais como tropa de defesa do que sabendo exercer ofícios civilizados, fez com que São Paulo se tornasse apêndice do campo. Cada propriedade rural era autossuficiente, uma verdadeira autarquia. O número dos artesãos que serviam a cidade era bem reduzido.

O único elo a congregar moradores no centro urbano era a tradição religiosa. Ao menos cinco procissões anuais faziam com que os patriarcas e seus dependentes viessem ao burgo. Fora disso, a permanência era nas fazendas.

A distância do litoral, já mais desenvolvido, fez com que até o século XVIII, os paulistas ignorassem o governo central. Fruíam de considerável autonomia em assuntos como a defesa, relação com os índios, administração eclesiástica, controle dos preços e das mercadorias, obras públicas e serviços municipais. Consolidou-se a dualidade rural-urbana: as famílias possuíam uma residência na cidade, mas o tempo útil se passava na habitação rural.

A necessidade de braços fazia com que as proles se estendessem. O "homem bom" daquela época, similar ao "homem de bem" de nossa era, deveria ser um proprietário cristão, não gente do povo. O paradigma típico era o patriarca senhorial, dono da obediência e do destino de uma numerosa família ampliada e seus dependentes. Era comum a prole de dez ou doze filhos legítimos e as mortes precoces no parto propiciavam sucessivos casamentos. Além disso, as escravas, índias e em seguida negras, concebiam normalmente filhos de seus senhores. Estes os reconheciam de modo regular nos testamentos. Mas também se registrou declaração insólita no sentido de que "ficam alguns bastardos...não sei a verdade de quantos são meus...será conforme as mães disserem", como aponta José de Alcântara Machado em "Vida e Morte do Bandeirante".

No mais, a penúria dos paulistas é uma das explicações para o bandeirismo. Ou não teria essa epopeia tido como causa a inquietação, o espírito de aventura e a vontade de obter mais terras?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 02 04 2023



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