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PERDER TESOUROS É TRADIÇÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
O Brasil das demolições é uma terra em que o passado não tem valor. A causa é conhecida: a falta de educação.

Perder tesouros é tradição

O Brasil das demolições é uma terra em que o passado não tem valor. A causa é conhecida: a falta de educação. Ausência de cultura que reverencie aquilo que o ontem produziu, necessário à preparação do amanhã. No fatídico 8 de janeiro de 2023, o dia da vergonha nacional, vândalos ignaros esfaquearam pinturas e arremessaram ao chão o valioso relógio do qual só existe um similar em Versailles. Peça que o então Príncipe Regente João, depois D. João VI, Rei do Brasil, Portugal e Algarve, trouxe consigo na fuga ao exército napoleônico.

Não foi a primeira perda histórica, senão a continuidade do processo de destruição de objetos e documentos definidores de nossa identidade nacional. No incêndio do Museu Histórico Nacional, de que ninguém mais fala, porque as tragédias são diuturnas e cada qual mais emocionante do que a anterior, desapareceram três relíquias. Elas documentavam as três fases românticas da tumultuada e efêmera existência do fundador do Império Brasileiro. Dom Pedro I do Brasil, Dom Pedro IV de Portugal, viveu apenas trinta e quatro anos. Morreu na mesma sala do Palácio de Queluz em que nascera. Um espaço denominado "Dom Quixote", ornado de painéis que retratam alguns dos episódios do personagem criado por Cervantes.

A primeira relíquia é o sinete-berloque destinado à corrente do relógio. Era bela turmalina azul, gravada nas suas três faces, com a qual o príncipe apunha o seu selo, acionando o seu brasão sobre a cera quente. Na primeira face, estava a marca utilizada às mensagens de caráter oficial. Como diz Gustavo Barroso, "dentro duma cercadura elíptica, com a legenda patriótica Independência ou Morte, sua sigla ou monograma, em cursivo. Na outra, o carimbo para a correspondência de amizade: um cisne boiando sobre as águas, símbolo de pureza de intenções, e o dístico, em francês, como era da elegância de seu tempo - "Je pense". Na terceira, uma pena e um coração, com o lema, que sempre desmentira na prática amorosa - Sempre sincero. Este era o sinete das cartas e bilhetes de amor".

Não se publicou um inventário do que desapareceu, calcinado pelas chamas que levaram considerável parte da História do Brasil. Com certeza, a turmalina não teria resistido à temperatura do incêndio.

A segunda preciosidade, com certeza, também desapareceu. Pois era uma carta que o Imperador destinara à Marquesa de Santos, Domitila de Castro, depois senhora Tobias de Aguiar. Essa carta foi uma oferta do Presidente Epitácio Pessoa ao Museu. Vale a pena transcrevê-la:

"Meu Amor e meu Tudo. No dia em que fazia três anos que eu comecei esta amizade com você, assino o tratado do nosso reconhecimento como Império por Portugal. Hoje que você faz os seus vinte e sete recebo a agradável notícia de que no Tejo tremulara em todas as embarcações nele surtas o Pavilhão Imperial, efeito da retificação do Tratado por El Rei, meu Augusto Pai. Quanto é para notar uma tal combinação de acontecimentos políticos com os nossos domésticos e tão particulares!!! Aqui há o que quer que seja de misterioso que eu ainda por ora não diviso, mas que indica que a Providência vela sobre nós (e, se não é pecado), até como que aprova a nossa tão cordial amizade, com tão célebres combinações. Como estou certo que você toma parte e bem a peito nas felicidades ou infelicidades de nossa cara Pátria, por isso tive a lembrança de lhe escrever. Este seu fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro Amigo e Amante do fundo d'alma, o Imperador. P.S.: Não responda, para não se incomodar e perdoe a carta ser tão grande, e maior que fosse, ainda não diria o que querem dizer tais combinações".

Já a terceira relíquia é a magnífica placa de Dignitário da Ordem Imperial da Rosa, criada para comemorar o casamento de D. Pedro I com D. Amélia, uma linda estrela de esmalte branco sob a coroa do Império, a repousar sobre um resplendor de ouro e circulada por delicada guirlanda de rosas desabrochadas. No centro, as iniciais entrelaçadas: P.A., de Pedro e Amélia, aureoladas pela legenda: Amor e Felicidade.

Alguém acredita que tais objetos, tão importantes para conhecer melhor o Império do Brasil, possam ter sobrevivido ao inferno em que o Museu Nacional se transformou na noite de 2 de setembro de 2018?

Alguém se preocupou em avaliar o que se perdeu nesse desastre que vai completar cinco anos? E qual o custo da destruição de 8 de janeiro de 2023? Quem responderá por isso?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 22 03 2023



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