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ABRAÇO DE PAI
Acadêmico: Gabriel Chalita
O tempo não é dado a permissões de retornos. Mas é amigo das correções de rumo.

Eu tenho dois filhos. Os dois cimentam de felicidade o meu caminhar no mundo. Escolheram, como eu, o direito. Advogam com brilho nos olhos e acreditam nos cotidianos dos tribunais para aliviar o peso das injustiças. Quando dizem deles a mim, um sorriso explica o que sente um pai, quando um filho é reconhecido por fazer o certo.

Certo dia, foi o que disse a alguns amigos que, em um círculo, falavam das amargas histórias que nos interrompem o cotidiano. Certo dia, quando eu ainda era juiz em início de carreira, um cioso escrivão surgiu, diferente, assustado e assustou nossa rotina de trabalho, "Doutor, eu não posso ajudar o senhor hoje no júri". Perguntei a razão. Se estava com algum problema de saúde. Ele prosseguiu, marcado pela vergonha e pelo constrangimento. "É melhor eu ir embora". Insisti. Disse que poderia confiar em mim. Ele retirou, então, o orgulho e apresentou sua vergonha. "Sabe, doutor, aquela história de um homem que sai de casa para comprar cigarros e nunca mais volta?" Aguardei o prosseguimento. "Sou eu. Faz tanto tempo. Eu morava em outro estado. Deixei minha mulher e meu filho pequeno. E nunca mais voltei. Hoje, meu filho está aqui. Sentado na primeira fileira querendo fala r comigo. Eu preciso ir embora".

Ouvi, sem interrupções, a não ser a dos afetos dentro de mim. Pensei nos meus filhos. Pensei no meu pai, meu inspirador de ações corretas. O meu pensamento falando para dentro deixou algum silêncio entre nós. "Não me julgue, por favor, eu preciso ir". Foi, então, que eu pisei com delicadeza naquela história. "Não, você não precisa ir. Você não precisa ir mais uma vez".

"Doutor, eu não sei o que ele quer, eu não sei como ele vai reagir, eu não sei as consequências da raiva de um abandono".
Pedi que ele aguardasse. E fui ter com aquele filho. O salão ainda estava habitado por pouca gente. O silêncio era o som mais forte naquela espera. O menino sabia que era eu o juiz. Perguntei o que ele queria. Os olhos falaram antes e, depois, veio o dizer: "Abraço de pai". Abracei eu primeiro. Coloquei aquela cabeça tão preenchida de interrogações em meu peito e acariciei o tempo das ausências. Fui com ele até onde estava o pai. O escrivão, vendo o filho chorando, chorou. Os medos se foram, envergonhados com a chegada do amor.

O filho disse que demorou a encontrar o pai, que não o julgava, que as histórias dos interiores são difíceis de serem explicadas. Falou da mãe, tão doente dos nervos. O escrivão pediu perdão ao filho. "Se eu pudesse voltar o tempo...".

O tempo não é dado a permissões de retornos. Mas é amigo das correções de rumo. Para aqueles dois, ainda havia vida a ser vivida. E eu pude, ali, ver o poder que tem um humano de arrumar os desencontros de outros humanos. O meu silêncio talvez silenciasse o encontro. Conversam eles até hoje. Pai e filho nunca mais deixaram de se alimentar do tal abraço.

Quando contei a história tão antiga e tão presente em mim, um amigo enxugou as lágrimas e explicou "Que saudade tenho eu do abraço do meu pai". Pensei também no meu que, hoje, só vive dentro de mim. Foi quando a porta da casa se abriu e um dos meus filhos entrou sorridente. Não há poder mais poderoso do que o sentimento de amar e ser amado. Julgo tantas vidas, decido tantas histórias, peço sempre a Deus a sabedoria de Salomão, que eu nunca me distraia do ofício de ser justo e da obrigação de todo ser humano, de estar atento aos outros seres humanos que, com uma palavra apenas, relembram o prazer do amar.



Publicado no site do jornal O Dia, 19 de março de 2023.



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