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O FEL DA INGRATIDÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
Seria interessante alguém se dispusesse a escrever sobre a História da Ingratidão no Brasil. Não seria um livro, senão uma enciclopédia.

O fel da ingratidão

Entristece-me a carreira que a ingratidão registrou no Brasil, algo que talvez possa tornar compreensível a crônica dos problemas insolúveis. Acompanhar a vida de brasileiros que se devotaram a uma causa é acompanhar a trajetória dessa característica tão nossa: olvidar o bem. Ou até pagar o bem com o mal.

O caso emblemático é o de Pedro II, estadista magnânimo, erudito, humilde e acessível, expulso na madrugada como se fora um criminoso, assim que instaurado o golpe republicano. A República brasileira, assim como a Revolução Francesa, veio a ceifar a cabeça de muitos de seus artífices.

Mas Pedro I, o proclamador da Independência, também foi alvo de ingratidão. Os áulicos não satisfaziam os interesses antagônicos. Em 1831, menos de dez anos depois do grito do Ipiranga, demitira-se o gabinete de 19 de março, substituído pelo gabinete de 5 de abril, conhecido como "o gabinete dos Marqueses". Povo e tropa se revoltaram. Queriam a exoneração dos marqueses e o retorno do gabinete de 19 de março.

Ao lado de Pedro I apenas Luiz Alves de Lima, o futuro barão de Caxias. O Imperador envia aos amotinados uma proclamação por ele manuscrita: "Brasileiros! Uma só vontade nos una. Para que tantas desconfianças, que não podem trazer à Pátria senão desgraças? Desconfiais de mim? Assentais que poderei ser traidor àquela mesma Pátria que adotei por minha? Ao Brasil? Àquele mesmo Brasil por quem tenho feito tantos sacrifícios? Poderei eu atentar contra a Independência, que eu mesmo proclamei sem ser rogado? Poderei eu atentar contra a Constituição que vos ofereci e convosco jurei? Ah! Brasileiros! Sossegai: eu vos dou a minha imperial palavra de que sou constitucional de coração. Contai em mim, e no ministério; ele está animado dos mesmos sentimentos que eu; aliás, o não nomearia. União, tranquilidade, obediência às leis e respeito às autoridades constituídas". Assinou como "Imperador Constitucional e defensor perpétuo do Brasil".

O juiz de paz encarregado da leitura não pode conclui-la. O documento foi arrebatado às suas mãos e rasgado. Começaram os uivos e os gritos: "Abaixo o déspota! Abaixo o perjuro!".

Quase meia noite de 6 de abril e o imperador, ao lado da Imperatriz D. Amélia, assim se exprimiu: "Esta situação é intolerável. Não há quem a suporte. E não querendo que ninguém por mim se sacrifique, nem que por minha causa corra sangue, vou abdicar, como já há tempos é o meu desejo".

Escreveu: "Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei mui voluntariamente abdicado na pessoa de meu muito amado e prezado filho, Sr. D. Pedro de Alcântara". Boa vista, 7 de abril de 1831, décimo da Independência e do Império. Pedro.

Entregou ao Major Frias a abdicação. "Parto para a Europa. Deixo esta terra pela qual tanto trabalhei. Ingratos! Sejam felizes".

Pedro I pensava em dar a cada um dos seus filhos, D. Pedro e D. Maria, as suas duas coroas. Nomeia José Bonifácio tutor dos filhos que deixou no Brasil: "Tendo maduramente refletido sobre a posição política deste Império, conhecendo quanto se faz necessária a minha abdicação, e não desejando mais nada neste mundo senão glória para mim, e felicidade para minha Pátria, hei por bem, usando do direito que a Constituição me concede no capítulo 5, artigo 130, nomear, como por este meu Imperial Decerto nomeio, Tutor de meus amados e prezados Filhos ao mui probo, honrado e patriótico Cidadão José Bonifácio d'Andrada e Silva, meu verdadeiro amigo".

Antonio Borges da Fonseca, redator de "O Repúblico", um dos principais autores da abdicação, cantou as glórias do dia: "O perjuro abdicou, que se vá em paz gozar dos frutos das suas traições: não tinjamos a nossa revolução com sangue, e ensinemos ao mundo e à posteridade, que quando se defende a liberdade não se há mister de levar o estrago e a morte à humanidade".

A bordo do navio inglês Warspite, Pedro I ainda se dirigiu aos representantes da Nação, para que confirmassem a nomeação do tutor: "...resta-me agora como Pai, como Amigo da minha Pátria adotiva, e de todos os brasileiros, por cujo amor abdiquei duas coroas para sempre, uma oferecida, e outra herdada, pedir à Augusta Assembleia Geral que se digne confirmar esta minha nomeação".

Em 13 de janeiro de 1831, Pedro I deixava definitivamente o Brasil. José Bonifácio se desincumbiria da tutela por pouco tempo. Intrigas e interesses mesquinhos o afastariam da missão.

Seria interessante alguém se dispusesse a escrever sobre a História da Ingratidão no Brasil. Não seria um livro, senão uma enciclopédia.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 08 03 2023




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