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GENTE DESMEMORIADA
Acadêmico: José Renato Nalini
A História não atrai senão alguns espíritos sensíveis, que sabem da importância do ontem para que o amanhã não nos surpreenda de forma indesejável.

Gente desmemoriada

Culpa nossa o desinteresse da juventude pelo passado. Não a educamos para preservar a memória. A História não atrai senão alguns espíritos sensíveis, que sabem da importância do ontem para que o amanhã não nos surpreenda de forma indesejável. Além disso, o brasileiro é refém da cultura de uma falaciosa modéstia, sempre a elogiar o estrangeiro e a criticar o nacional. É recorrente afirmar-se que o país tem pouco mais de meio milênio, que é muito cedo para se falar em uma civilização. Esta se desenvolveu de forma requintada em outros hemisférios e em outras eras.

Mas seria de todo conveniente que a Universidade, instância em que a busca da verdade pura não deve se submeter a qualquer condicionamento, cuidasse de cultivar os vultos que pudessem fornecer inspiração às novas gerações. Eles existem. Precisam ser recuperados e prestigiados. Não para reiterar o ufanismo encomiástico um tanto forçado, tão comum a certas mediocridades. Mas para retratar com a possível veracidade os perfis dos que merecem ser lembrados. Sem excluir o seu lado humano e, por que não, os seus defeitos. Afinal, André Maurois ensinava: "Creio que a verdade sobre um homem deverá conter tudo quanto forma a sua grandeza; mas acredito também que não se deva desprezar o que constitui a sua fraqueza, porquanto a verdadeira grandeza é frequentemente resultante de pequenas misérias dominadas".

Prestar-se-ia inequívoco serviço à História do Brasil escrever-se a biografia de filhos hoje esquecidos. Há muitos, ignorados por quase todos. Um deles é João Pandiá Calógeras. Nasceu no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1870, aprendeu a ler e a escrever aos quatro anos de idade. Não frequentou escolas oficiais. Sua inigualável cultura em humanidades, deriva do empenho de pais e avós e ao corpo de preceptores particulares. Aos catorze anos prestou os treze exames realizados no Colégio Pedro II, para ingressar na Escola de Minas de Ouro Preto.

Foi arguido em História Universal e do Brasil, por Capistrano de Abreu, a quem se ligou por uma amizade que durou até à morte. Falava perfeitamente o francês, idioma que utilizou para escrever, desde a infância. Aos quinze anos foi nomeado para examinar os preparatórios de francês, inglês, história e geografia. Sua severidade o fez ser vaiado pelos estudantes. Calógeras foi o primeiro classificado em sua turma. Formou-se em engenharia com vinte anos incompletos.

Entre a formatura e sua eleição como deputado federal por Minas (1890-1897) exerceu a engenharia de minas, em Santa Catarina, realizando pesquisas de geologia em Cariguaba. Estudou a bacia terciária do Gandarela, da qual se extrai belíssimo mármore. Publicou trabalhos técnicos, especializou-se em geologia econômica e tornou-se Mestre insuperado. A familiaridade diuturna com o seu tema de estudos explica a façanha de ter escrito, em poucos dias e aos 33 anos, uma obra prima: "As minas do Brasil".

Parlamentar assíduo, competente, patriota, não faltou a uma sequer das sessões das legislaturas que exerceu. Realizou magníficas conferências e assumiu, no governo Venceslau Braz, em 15 de novembro de 1914, a pasta da Agricultura, Comércio e Indústria, que São Paulo recusou, por considerá-la de somenos importância.

Entusiasta das cooperativas, inicia e organiza o crédito agrícola, estuda a substituição da gasolina pelo álcool, elabora minuciosa lei reguladora da propriedade das minas, ainda conhecida por "Lei Calógera".

Num país que abomina o planejamento e se organiza empiricamente, ao sabor da famélica volúpia por cargos públicos, entendeu a importância do fomento agrícola. "Pasta do Fomento", deveria ser a da Agricultura, convertida em "Pasta de burocratas" ou de "náufragos políticos". Se a agricultura fora levada a sério na República, o agronegócio não teria exterminado tanta floresta e biodiversidade, sem prejuízo de uma elevada produtividade sustentável.

Em 1914, ao recusar sua segunda candidatura à Presidência do Brasil, Rui Barbosa proclamou: "O Brasil é espólio de uma casa roubada". Era a impotência do gênio diante do cataclismo Hermes. Quem foi chamado para assumir a Fazenda? Pandiá Calógeras. Indiferente ao clamor popular, insuflado por interesses contrariados, realiza obra de salvação pública. Honesto, não pactuaria com o desperdício de dinheiro público. Combate inveterados defraudadores da renda pública. Nosso país fazia jus ao provérbio chinês de que "há mais gente honrada nos presídios do que nas Alfândegas". Ao deixar o governo, recebe do banqueiro Rotschild um documento declarando que "nunca as nossas finanças estiveram tão florescentes".

Trabalhou insanamente e seu prêmio: campanha difamatória pela mídia, acusando-o de corrupto. Demitiu-se. Assunto para uma próxima reflexão.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 02 03 2023




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