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A ARTE DE BAJULAR
Acadêmico: José Renato Nalini
Diante de qualquer partícula de poder, inclinam-se aqueles que têm complacente espinha dorsal. Ajoelham-se, reverenciam, rendem homenagens.

A arte de bajular

Um dos exercícios mais frequentes na rotina brasileira é o da bajulação. Diante de qualquer partícula de poder, inclinam-se aqueles que têm complacente espinha dorsal. Ajoelham-se, reverenciam, rendem homenagens. Nada demais, se todas elas fossem justas. O mais frequente é a aposta numa retribuição. Qualquer seja ela. Investe-se em alguém que poderá, mais à frente, atender a uma reivindicação qualquer. Nem que seja a migalha de prestígio da convivência com alguém diferenciado.

As homenagens que deveriam primar pela adequação parecem aquelas destinadas aos mortos. Estes, em tese, não poderão recompensar. Mas nem sempre é assim. Quando há herdeiros que têm condições de reconhecer o preito aos familiares falecidos, então a tática se enquadra na regra do servilismo interesseiro.

A História do Brasil está repleta de episódios assim. E a crônica diária é prenhe de reiterações. Um deles é narrado por Mário de Andrade em carta que escreveu em 10 de outubro de 1941 a Paulo Duarte. Diz ele: "Não sei se você conhece o caso, deve conhecer. Uma bajulação indecente fez nomearem aqui o dr. Getúlio Vargas doutor honoris causa da Faculdade de Direito". Em 1932, a revolução constitucionalista havia sido esmagada pelas forças federais, auxiliadas por aquelas de Estados-irmãos que haviam se comprometido com a causa bandeirante contra o caudilho.

Em 1937, o Estado Novo decretou intervenção em São Paulo. Governador e prefeito foram destituídos. Vargas foi um ditador antipaulista. Daí a justa indignação dos acadêmicos das Arcadas. Revoltaram-se e promoveram passeata de protesto. As autoridades reprimiram as manifestações, suspenderam os alunos, fecharam a Faculdade.

O ditador era inteligente. Mandou Gustavo Capanema, seu ministro, a São Paulo. Mário de Andrade foi se encontrar com ele no Hotel Esplanada. Conta que Getúlio o chamara na tarde anterior: "a coisa tocara fundo o presidente, ele sofrera de fato com a repulsa da estudantada e queria por uma pedra no sucedido: 'Você vai a São Paulo e acaba com isso. Reabra a Faculdade, suspenda todos os castigos".

Capanema veio a São Paulo na mesma noite. Na viagem de trem, questionou-se: o que um Ministro da República vai fazer junto a estudantes que se recusam a homenagear o Presidente de cuja gestão Gustavo Capanema fazia parte? Getúlio recomendara a recusa à homenagem. Com isso, poria fim ao incidente.

Mário de Andrade afirma que esse caso representou, a seu ver, "a maior vergonha porque já passou a intelectualidade paulista". Pois perante o Conselho Universitário, Capanema declarou que o Ministro não poderia, nem mesmo o presidente, reabrir a faculdade. Era prerrogativa do Conselho Universitário. Recomendou que o diretor revogasse as suspensões.

Como o diretor da São Francisco titubeasse, por não aceitar que sua autoridade fosse arranhada, Capanema sugeriu: "Então tive uma ideia: pois bem, para salvar a sua autoridade, o senhor mantém as suspensões, mas estas não terão efeito positivo e não serão computadas as faltas dos suspensos!". O diretor aceitou.

Em seguida, Gustavo Capanema arrematou que Getúlio recusava a homenagem. Como contra a concessão só haviam votado o Professor Ernesto Leme e o representante discente, os demais professores ficaram tristes. Insistiam no servilismo bajulatório.

Propuseram que, serenados os ânimos estudantis, novamente proporiam a concessão da honraria ao ditador. A Congregação estaria bem com o Presidente da República e este, se assim entendesse, não marcaria a data para a outorga do título. Todos os escrúpulos estariam poupados, as honras ressalvadas, os interesses preservados.

Lembro-me do constrangimento de Paulo Bomfim, quando contava que Vargas viera inaugurar a Avenida 9 de Julho, data da deflagração da guerra intestina em que São Paulo queria a democracia, não separar-se do Brasil. E de seu respeito e consideração pelo Professor Ernesto Leme. Quando do féretro daquele intelectual, solicitado a falar, Paulo pronunciou eloquente oração: "Ernesto morreu! São Paulo está sem Leme!".

Quanto à vocação louvaminheira de muitos que optam pelo escancarado ofício da gratuita e desabrida lisonja aos poderosos, ela prospera e atravessa gerações. É uma característica da natureza humana.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 28 02 2023



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