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UMA DOR CHAMADA FOME
Acadêmico: Gabriel Chalita
As cinzas do dia das cinzas inspiraram o mais bonito do fazer religioso, fazer sagrado cada instante de cada dia da existência.

Entro na Igreja em uma quarta-feira, em uma quarta-feira de cinzas. Sento em um banco com ainda pouca gente. Fecho os olhos e rezo. Rezo por algumas dores que incomodam os meus dias. Rezo por filhos meus que ainda não aprumaram na vida. Rezo por meus pais que se foram sem que eu decidisse, sem que eu quisesse, sem que eu compreendesse.

A morte nunca deixou de ser uma contrariedade. Por que precisamos nos despedir? Por que enterramos os que nos germinaram a vida? Não. Não concordo. Sou um homem simples e pouco afeito aos entendimentos das coisas difíceis. Então, não concluo. Pergunto, apenas. E sei que Deus não se importa das minhas perguntas. Não é por mal. É por dor.

Perguntei quando Fátima foi embora. A minha mulher encontrou outro e desencontrou os meus sentimentos. O que eu jurava ser eterno escorreu pelos descontroles da vida. Ainda não me recuperei. Dias perdidos os que passei pelo passeio da casa onde ela vive com outro, onde ela diz ao outro o amor que deixou de dizer a mim. Se ela desistisse, se ela se arrependesse, poderia voltar. Nem pediria as devidas desculpas. Peço a Deus que eu a esqueça, peço a Deus que um outro amor me convide para viver.

Enquanto peço com os olhos fechados a minha dor, uma criança encosta em mim e me pede algum pão. A missa começa. As cinzas têm um importante sentido. Somos pó. Somos nada. Somos passageiros de um tempo curto da embarcação do existir. É preciso demitir as arrogâncias. É preciso reencontrar a liberdade nu, a liberdade sem tantos apetrechos desnecessários. Oh, vida pesada!

Ouço o padre dizendo que a Campanha da Fraternidade desse ano é sobre a fome. Tenho fome de amor. De comida, não tenho. Esqueço a fome de amor que tenho e presto atenção. Penso na menina faminta ao meu lado. Decido ajudar. Decido ir com ela, depois da missa, deixar que ela escolha o que comer. Há uma padaria bem em frente à Igreja. Se não tenho o amor que teimei, tenho a possibilidade de muito amar.

O padre fala dos milhões que passam fome. Fala das crianças. Explica o que Jesus faria.

Presto atenção. Sempre que presto atenção, melhoro. Sempre que compreendo os problemas dos outros, alivio os meus. "Fraternidade e fome" é um sopro de consciência no que não fazemos.

A menina ao meu lado, na saída da Igreja, pergunta se pode chamar os irmãos que vendem pano de prato e que também passam fome. Eu digo que sim. Há uma senhora com as pernas enormes de um inchaço do abandono. Parece ter mais de uma dor. Os que estavam na Igreja passam sem olhar, estão apressados. Ouviram e não ouviram o que disse o padre. "Dai-lhes vós mesmos de comer". O ensinamento está escrito no evangelho de São Mateus. E é o lema da Campanha. Eu prestei atenção.

Não tenho muito. Mas, talvez, a tristeza da partida de minha mulher tenha feito eu remexer em alguns comodismos. Peço à menina que espere e me sento ao lado da senhora. Deyse é o seu nome. A doença chegou há tempos, nem incomoda tanto, o que incomoda é a fome. Resolvo ajudar. Digo que gostaria de ir com ela à Santa Casa. Que não é longe. Ela aceita. Convido para comermos na padaria. Vamos todos. Ela, andando com muita dificuldade, a menina que estava ao meu lado e os seus dois irmãos. O atendente pergunta se eles vão entrar. Eu digo que sim. Ele acha estranho. Estranho é excluir!

Conversamos sobre a escolas dos três. Sobre a mãe que morreu. Sobre o pai que bebe muito e bate neles. Deyse, a senhora das pernas doridas, fala de um filho que morreu e de um marido que foi embora. E chora. Conto da minha mulher que também foi embora. E ela chora, também. Tem compaixão pela dor do outro. As crianças parecem desentender da dor que provoca nos adultos o abandono de um amor. Conhecem outros abandonos. Agradeço às crianças pela companhia e acompanho Deyse.

No hospital, os cuidados. Um médico, profundamente humano, humaniza o jeito de tratar daquela mulher tão destratada pela vida. Volto para casa. Canto em silêncio uma canção religiosa. Uma alegria imensa vai ocupando lugares vazios que viviam em mim.

Foi tão simples. Foi tão lindo. As cinzas do dia das cinzas inspiraram o mais bonito do fazer religioso, fazer sagrado cada instante de cada dia da existência. As cinzas desenharam um coração dentro do meu. A dor da fome deles era maior que a minha. Prestando atenção, aprendi.

Não tenho mais Fátima. Talvez não tenha tido nunca. Talvez ninguém tenha ninguém. É a tal liberdade nu. Nascemos desacompanhados e assim nos despediremos da vida. Não tenho meus pais. Tenho em mim, apenas. Nas memórias dos dias que se foram. Meus filhos já são filhos das histórias que construíram. Tenho a solidão ou a ação amorosa.

Hoje, foi um dia definitivamente bom. O cuidar cuidou de mim. Cuidado, prosseguirei cuidando. É o único que tenho. É o que posso oferecer. É o que alivia uma dor chamada fome.




Publicado no site do jornal O Dia, 26 de fevereiro de 2023.



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