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Acadêmico: José Renato Nalini Temos uma autoimagem que nem sempre - ou quase nunca - vai corresponder àquela que os outros fazem de nós.
Como nos enxergam Temos uma autoimagem que nem sempre - ou quase nunca - vai corresponder àquela que os outros fazem de nós. É natural a tendência a minimizar defeitos e a supervalorizar vantagens. Quando se estuda o capítulo de crimes contra a honra, inicia-se por distinguir a honra subjetiva, aquela que nutrimos sobre nós mesmos e a honra objetiva, resultante da avaliação dos demais. Ninguém escapa disso. Já se explorou na ficção a tragédia que seria se os pensamentos fossem detectados, independentemente de qualquer manifestação. Haveria rupturas, decepções, quebras de juramentos e o convívio se tornaria quase impossível. Esta reflexão veio à tona depois de reler o livro de Paulo Duarte, "Mário de Andrade por ele mesmo", que me fez procurar o livreto "Lembrança de Mário de Andrade - 7 cartas", de Rubens Borba de Moraes (1899-1986). Pessoas que conviveram e cultivaram autêntica amizade. Aquela de se esgotar nos dedos da mão (e de uma só mão...). Mário de Andrade (1893-1945), verdadeiro polímata, foi um prolífico missivista. Só para Paulo Duarte (Paulo Alfeu Junqueira Duarte - 1899-1984) escreveu mais de cem cartas, dentre as localizadas. Muitas se perderam. E foi descrito por ambos os amigos. Rubens conta que "Mário andava todo perfumado. Nunca perdeu esse traço de faceirice. Sempre cuidou muito de sua aparência: usava água de colônia, perfume francês no lenço, como, aliás, todos os homens elegantes da época. Vestia-se com apuro um tanto vistoso para meu gosto. As gravatas de cores vivas e às vezes espalhafatosas que usou toda a vida, faziam o objeto de nossas críticas e piadas". Usava pó de arroz "que passava no rosto para tirar o brilho da pele. Naquele tempo os homens usavam pó de arroz, depois de fazer a barba. Era moda. Uma noite, em casa de D. Olivia Guedes Penteado, indo lavar as mãos, aproveitou para esfregar no nariz um papelzinho. Acabada a operação, em frente do espelho, exclamou: "Meu Deus, como sou feio!". De fato era feio, mas, como dizem os caboclos, de uma feiura tão simpática! Não reparávamos nessa feiura. Só quando algum estranho ao grupo a mencionava é que atentávamos para aquele queixo forte e prognata, munido de dentes grandes. Acabou substituindo-os por uma linda dentadura. Inventamos que ela custara tão caro que, para pagá-la, tinha hipotecado a casa e, para fazer funcionar um aparelho tão grande, usava um motorzinho elétrico disfarçado no bolso. Mário ria-se; ninguém se divertia mais que ele com essas brincadeiras". Sobre a dentadura, outra piada era a de que fizera duas: uma para comer e a outra, de veludo, só para conversar com Tarsila. Mas Rubens continua a descrição: "Tinha as mãos grandes de pianista, e peludas. Os traços bem marcados. Os cabelos pretos perdeu-os muito cedo, ficou com uma vasta careca. Era o queixo que o enfeiava. Os olhos ainda que muito pequenos e míopes, pareciam vivíssimos. A fisionomia era tão expressiva que nela se liam todas suas emoções". O pianista e professor de piano tinha uma voz "extremamente agradável. O retrato de Mário por Portinari é de tal maneira exagerado que parece uma caricatura. O busto que está no jardim da Biblioteca Municipal de São Paulo não é nada parecido. A boca, o queixo, a parte inferior do rosto não é de Mário. Prefiro o retrato feito por Segall ou talvez o de Tarsila". Mário Raul Morais de Andrade compôs letra e música da modinha que Gabriel Chalita cantou durante a posse de Júlio Medaglia, sucessor de Mário na Academia Paulista de Letras: "Minha viola gemeu, meu coração estremeceu. Minha viola quebrou, teu coração me deixou". Com o nome de "Viola quebrada", passou para o patrimônio musical de Piratininga, chão que Mário tanto amou, ao ponto de destinar cada parte de seu corpo para um dos espaços paulistanos preferidos. Quando tantos se propõem a biografar Mário de Andrade, que foi crescendo e se agigantando depois de morto, ele que se dizia ser muitos e não um só, é importante consultar obras daqueles que conviveram com ele e que podem fornecer elementos importantes para a reconstituição de uma vida que continua a instigar a curiosidade póstera. Já a leitura de suas cartas, no livro de Paulo Duarte, auxiliará a traçar um perfil mais exato de sua multifária personalidade, a compreender seus dramas, seu sofrimento, os traumas que o atormentaram, mas que o não impediram de ser um dos intelectuais mais exuberantes que São Paulo já produziu. Suas cartas, entre bem-humoradas e dolorosos testemunhos, permitirão incursionar pela autoimagem de Mário de Andrade. Como é que ele se enxergava? Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão Em 26 02 2023 voltar |
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