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Acadêmico: José Renato Nalini Quem ainda confiar em gratidão, reconhecimento, respeito à pessoa, independentemente do cargo, receberá paga idêntica à de Mário de Andrade.
Sempre a mesma história A cada mudança de governo, em qualquer das três esferas da nossa Federação assimétrica, é constatável o burburinho em torno a quem possui competência para nomear. O Estado brasileiro cresceu desmesuradamente. É paquidérmico e tentacular. Há cargos, funções, sinecuras, "boquinhas" para todos os gostos e tamanhos. E haja desfaçatez na procura de ser lembrado. Vale tudo. Uma comédia de mau gosto, no fundo um ressaibo de tragédia. Quanto aos que deixam o poder, há choro e ranger de dentes. Quem se acostumou a viver à sombra do Estado, não consegue se imaginar na competitividade da iniciativa privada. Não ser aproveitado equivale a uma capitis diminutio, a um ostracismo pior do que a sanção grega. Nesse caldeirão em que se misturam dossiês, pedidos de recomendação, apelos a parentescos imaginários, sobram falsidades e ingratidões. A releitura de "Mário de Andrade por ele mesmo", de Paulo Duarte, mostra que há quase um século tudo era igual. Ao escancarar a vida do amigo, Paulo Duarte confessa: "Talvez eu fosse mais discreto, se não tivesse bebido tanto do vinho azedo da ingratidão e mesmo da traição de muitos a quem só fiz bem e fiz a carreira confortável, de cima da qual a maioria me cuspiu, depois que deixei postos, perdi posição e me tornei apenas o que sou e que já era". Essa experiência é a regra, não a exceção. Quantas vezes já escrevi sobre a "tática das homenagens", praxe brasileira do mais indisfarçado servilismo? Todas as honras para os cargos, nada para as pessoas. Basta ver o olvido em que caem os mortos. E pobres os que se iludem com a bajulação. Ela é destinada à expressão de poder e autoridade momentaneamente titularizada por alguém. Pouco interessa quem seja esse alguém. Animal crédulo e simplório, o bicho-homem acredita nas pompas e circunstâncias. Ninguém o retratou melhor do que a fábula do burro que carregava relíquias. Acostumado às reverências enquanto na procissão, estranhou o espancamento quando, sem os adornos que o revestiam, voltou à sua miserável morada: o estábulo. Mário de Andrade foi uma vítima das circunstâncias que envolvem a vida pública. Exerceu a função de primeiro responsável pelo Departamento de Estado, o que equivale hoje à Secretaria Municipal de Cultura, ao tempo do Prefeito Fábio Prado. Foram os anos mais felizes de sua fecunda e efêmera existência: morreu ao iniciar os cinquenta anos. Mas a sua morte derivou de sua exoneração daquele encargo pelo qual se apaixonara. O golpe de 1937, com a instauração do Estado Novo, o arremessou para um homeopático suicídio. Acrescente-se o nome de Mário Raul de Moraes Andrade à extensa relação dos injustiçados pela política brasileira. Política transformada em arremedo da verdadeira política, a arte de coordenar as ações estatais no sentido de atender ao bem coletivo. Política partidária que se tornou profissão. Em regra, daqueles que não conseguem vencer na meritocracia real da iniciativa privada. Os jovens brasileiros têm toda a razão quando nutrem ojeriza pela política, o território do engodo, da falsidade, do exclusivo interesse de quem dela se ocupa. A forma utilizada pelos desprovidos de valores verdadeiros, para fazer fortuna em nome do interesse público. Mário de Andrade cuidou do Departamento de Cultura de São Paulo com devoção e honestidade. Serviu-lhe o grito de Armando de Sales Oliveira, ao responder aos seus detratores: "Meu programa é a minha honestidade!". Mário sofreu, diz Paulo Duarte, a "hostilidade expatriadora até de muitos paulistas. De certos paulistas apenas ganhadores de dinheiro ou caçadores de posições. De certos paulistas idiotas que não acreditam no futuro e creem até na eternidade da sua precariedade material brilhante". Quem ainda confiar em gratidão, reconhecimento, respeito à pessoa, independentemente do cargo, receberá paga idêntica à de Mário de Andrade. Ele, que se dissera ser "um homem feliz", depois de sua expulsão do Departamento de Cultura, sentia-se como o descreve em suas cartas: "O desarranjo exterior, essa espécie de desânimo que só espera notícias, isso ainda não me faria muito mal, o pior é assim o ar de estrépito da minha psicologia assombrada. Tem momentos em que me toma tamanho medo, pavor mesmo da morte. Não sei como diga, porque se está longe de ser medo da minha morte, nem penso em mim. Eu tenho apenas um medo vago mas nitidíssimo de que alguma coisa vai morrer. Mas não é esse o medo que me toma por momentos, momentos pequenos mas que me destroçam por dias inteiros. E com isso estou vivendo uma vida miserável, em que tudo sai ruim". Para pessoas de bem - expressão hoje perigosa! - esse o sentimento depois de ocupar cargo público. Tudo isso, oitenta anos depois, continua não exatamente igual: hoje é pior. Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão Em 24 02 2023 voltar |
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