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NÃO SE CONSEGUE ENXERGAR
Acadêmico: José Renato Nalini
Quase todos os processos merecem solução ótima se continuarem a se servir de uma tecnologia que progride e se aprimora, coisa de que o sistema Justiça brasileiro ainda não se deu conta.

Não se consegue enxergar

O mundo mudou de forma drástica. O obscurantismo não consegue ou não quer enxergar a transformação. Apega-se a esquemas ultrapassados e quer impor, de forma autoritária, padrões que já não se sustentam.

Quando meus pares me elegeram para presidir o maior Tribunal de Justiça do mundo, o da Justiça Estadual de São Paulo, procurei cercar-me de jovens magistrados com expertise em informática. Tinha perfeita noção de que os tempos presenciais não se compatibilizavam mais com o ritmo da sociedade, à qual a Justiça deve servir.

Tivera dolorosa experiência com a resistência da OAB à implantação das audiências virtuais. No Tribunal de Alçada Criminal assistíamos às dispendiosas remoções de encarcerados de Presidente Bernardes e outros presídios distantes da capital, obrigados a se locomover até o Fórum Criminal da Barra Funda. Audiências que nem sempre se realizavam. Faltava uma testemunha, havia uma substituição. A audiência era redesignada. O preso ficava em péssimas condições naquele monumental edifício que não foi planejado para ter cárcere adequado ao imprescindível respeito à dignidade do humano entregue ao juízo.

Contingentes enormes de policiais militares eram recrutados. Com troca das equipes durante o período de percurso e permanência na capital, com retorno à Penitenciária. Muitas vezes escoltas adicionais, utilização de helicópteros, um enorme esquema de segurança.

Tudo isso, quando o Estado já adquirira instrumental propiciador de audiências virtuais. A síndrome de "Maria Bethânia" - olhos nos olhos - impediu, durante muito tempo, a utilização do equipamento. Os próprios réus pediam o seu uso. Mas mentalidades anquilosadas impediam o acesso a algo muito melhor para a segurança, para o trânsito, para o ambiente e para os próprios envolvidos na tragédia penal.

Instituímos o serviço à distância. Que funcionou perfeitamente. Quanto desperdício fazer com que todos os funcionários se locomovessem até a sede dos juízos, quando melhor poderiam atender aos objetivos da existência de assistentes para magistrados, trabalhando em sua casa!

Testemunhei o fenômeno do crescimento vegetativo incessante, a fazer com que espaços reduzidos abrigassem várias pessoas, a conversarem, a se entreterem na internet, a se servirem constantemente dos elevadores, em busca de cafés, espaço para fumar, idas a bancos, etc.

A pandemia veio mostrar que aquela opção funcionaria. E funcionou. Tenho relatos de processos intermináveis que foram encerrados mediante a racionalidade virtual. Testemunhas não precisaram se dirigir às salas de audiência. Um processo em que as vítimas eram vários médicos, cada qual a clinicar num Estado-membro, terminou com aplicação da sentença. Todos satisfeitos, inclusive o réu.

No âmbito civil, muitos acordos foram realizados. Os números não mentem e a produtividade aumentou. Calcule-se o quanto se economizou em tempo, utilização de transporte, energia dos elevadores, melhoria no trânsito, menor poluição, aproveitamento daquelas horas perdidas à espera de que todos estivessem presentes, o dispêndio em conversas desnecessárias. Um custo inestimável.

Há um outro fator relevante para uma Justiça que custa cada vez mais caro, diante de sua vocação de infinito crescimento. O Tribunal de São Paulo paga uma fortuna de alugueres mensais, para abrigar gabinetes de seus trezentos e sessenta desembargadores e centenas de juízes substitutos em segundo grau, além de juízes convocados. Durante a pandemia, esse gabinetes ficaram ociosos. E assim poderiam continuar, para economia do povo paulista. De igual forma, as viaturas oficiais permaneceram à espera de que fossem chamadas pelos juízes, com evidente redução de seu uso.

É compreensível que os magistrados que são nativos digitais se sentem muito mais à vontade com esse sistema, do que obrigados ao uso das "vestes talares", no mínimo o paletó e gravata, neste verão escaldante e chuvoso, para a compulsória presença física no local destinado a um desempenho que é muito mais eficiente se realizado à distância.

Se um dia a racionalidade chegar na mente dos que dispõem de competência para repensar a Justiça e para ajustá-la aos tempos contemporâneos, ver-se-á que sobraria verba a satisfazer outras necessidades do Judiciário, se a regra fosse inversa. Somente por exceção alguns processos presenciais. Quase todos eles merecem solução ótima se continuarem a se servir de uma tecnologia que progride e se aprimora, coisa de que o sistema Justiça brasileiro ainda não se deu conta.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 21 02 2023



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