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Acadêmico: Gabriel Chalita Hoje à noite, vamos desfilar. Nossa escola é a do samba que canta o amor e que dança a alegria de viver.
Dizem que os dias da festa se encerram com o encerramento da festa. Dizem que os foliões foliam e, depois, se recompõem para voltar à lucidez. Dizem que o que se diz não se diz quando o carnaval termina. Não. Não foi o que aconteceu comigo e com Marília. Eu ainda vivia o tempo em que o tempo não era percebido. Poucos ontens e muitos amanhãs. Era um daqueles bailes de carnaval. O terceiro dia. E vi Marília. E vi o sorriso convidador de Marília. Parei a noite, desliguei outro olhar e fiquei ouvindo suas histórias e dizendo as minhas. A música já explicava que a folia havia terminado. Andamos juntos pelas ruas amanhecendo. E apenas um beijo. E depois o sono interrompido por sonhos que faziam acordar. Acordei pensando nela. Trabalhava Marília em um banco. E eu, em outro. Morávamos não muito longe. Ela havia dito do namorado que havia partido. Contou as histórias que doeram. Eu disse que era preciso desviver o que viveu. Que também eu vinha de adeuses. Disse que havia esvaziado os meus sentimentos e prometido que seria um carnaval de esquecimentos e de folias. Ela sorriu. Disse que jurava cantar para esquecer a fome de amor. E ela repetiu o meu dito, gostou da fome de amor. Gostou do cantar para esquecer. Gostamos de tudo quando nos enamoramos. E foi assim que os dias se repetiram e que nunca nos esquecemos do primeiro dia. Viramos foliões da alegria de viver. Demitimos as dores do passado. Se tivemos medo, foi só nos inícios. Mas um medo aliviado pela esperança de uma história bonita. No início, ainda pensava em Sandra, a que me desprezou. A que fez me humilhar suplicando algum amor. Sandra roubou noites, noites indormidas, noites sem data para terminar. Terminou. E iniciou a escritura da história de amor da minha vida. São quase cinquenta anos daquele primeiro carnaval. Ainda nos vestimos de folia. Esquecemos a idade que temos e vamos para a avenida. Ver as escolas desfilando a vida. Seus temas. Seus enredos. Suas harmonias. Uma vida de harmonia foi o que ousamos construir. Se nos esquentamos, esfriamos. Se esfriamos, esquentamos. E assim vamos iludindo o fim e permanecendo. Marília teve um tempo de adoecer. Adoeci junto, na medida certa para não descuidar do cuidar. Um tumor veio, um tumor foi. O diagnóstico da cura se deu na véspera de um carnaval. Festejamos o recomeço. E quando não há o que recomeçar, recomeçamos mesmo assim. Aos que imaginam que os desejos se vestem de preguiça com o tempo, falo com conhecimento, desejamos um ao outro sem pausas. Nas várias formas de formar amor. No beijo, no corpo entregue ao encontro, no abrir as janelas de um novo dia, no decidir o passeio dos dias de descanso, no experimentar uma receita nova em um jantar a dois regado por um luar explicador de romantismos. Não sei se o destino existe ou se existem as coincidências. Não sei se tudo está escrito ou se escrevemos nós quando vamos vivendo. Só sei que agradeço o dia em que, pela primeira vez, nos vimos, nos falamos, nos decidimos aprender o idioma dos sentimentos para nunca mais esquecer. Hoje à noite, vamos desfilar. Nossa escola é a do samba que canta o amor e que dança a alegria de viver. Nossos filhos brincam de nos pedir emprestado tanta energia. O segredo está na limpeza da avenida e nos enfeites simples do desfilar. Para ser mais leve. Para levar embora o que não precisa ficar, o que não faz parte. Dizem que os dias de folia se encerram quando a folia se encerra. Foliões que somos da alegria, só encerraremos quando encerrarmos. Viver é o desfile que importa. Viver amando é a vitória que garante a permanência no grupo principal. Publicado em O Dia, 19 de fevereiro de 2023. voltar |
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